1 - Viagem Pela História de Angola

Uma viagem através dos tempos, povos, personagens e acontecimentos que moldaram a História de Angola.

Nome:
Localização: Cranbrook, Colômbia Britânica, Canada

Helder Fernando de Pinto Correia Ponte, também conhecido por Xinguila nos seus anos de juventude em Luanda, Angola, nasceu em Maquela do Zombo, Uíge, Angola, em 1950. Viveu a sua meninice na Roça Novo Fratel (Serra da Canda) e na Vila da Damba (Uíge), e a sua juventude em Luanda e Cabinda. Frequentou os liceus Paulo Dias de Novais e Salvador Correia, e o Curso Superior de Economia da Universidade de Luanda. Cumpriu serviço militar como oficial miliciano do Serviço de Intendência (logística) do Exército Português em Luanda e Cabinda. Deixou Angola em Novembro de 1975 e emigrou para o Canadá em 1977, onde vive com a sua esposa Estela (Princesa do Huambo) e filho Marco Alexandre. Foi gestor de um grupo de empresas de propriedade dos Índios Kootenay, na Colômbia Britânica, no sopé oeste das Montanhas Rochosas Canadianas. Gosta da leitura e do estudo, e adora escrever sobre a História de Angola, de África e do Atlântico Sul, com ênfase na Escravatura, sobre os quais tem uma biblioteca pessoal extensa.

quarta-feira, abril 17, 2024

1.6 Luanda, Bairro da Maianga, Liceus, e Cursos de Vida Apostólica

Alunos no Liceu Nacional Salvador Correia, 1969

 

Amigo Leitor - Para ler os meus outros blogs visite o Roteiro de Viagem. Obrigado. 

 

12. Liceu Paulo Dias de Novais

 
Em Setembro de 1961, mudámos outra vez de casa, desta vez para a Rua 28 de Maio, nº.9, (actual Rua Karipande) no Bairro da Maianga, onde haveríamos de viver até 1969, pois eu tinha sido matriculado no Liceu Paulo Dias de Novais, situado na Rua da Misericórdia (hoje Rua 17 de Setembro) na Cidade Alta ao lado do antigo Quartel General da Região Militar de Angola (hoje Ministério da Defesa), em frente ao jardim que tinha a estátua de Mouzinho de Albuquerque, por sua vez em frente à escola primária José Anchieta.
 
A memória sempre-presente e ao mesmo tempo a saudade mais profunda que tenho do Liceu Paulo Dias de Novais não era de facto o liceu, mas das muitas e belas acácias em flor que havia no largo em frente ao Quartel General (antigo Largo Mouzinho de Albuquerque) com as suas micro-folhas verdes e o encarnado vivo das flores que enchiam o jardim. Eu digo isto aqui não porque é um tópico comum no tema de saudade de Angola, mas sim porque o sinto mesmo profundamente. De facto, eu sinto que eu faço parte da acácia rubra, e a acácia rubra faz parte de mim.
 

Acácias Rubras em flor, foto obtida do blogue de "O Viajante", sobre Benguela

O liceu tinha nessa altura sido convertido de liceu feminino em liceu masculino para acomodar o número crescente de alunos vindos das áreas afectadas pela guerra cujas famílias haviam decidido  não retornar às áreas afectadas pela guerra e permacer em Luanda, já que o novo edifício do Liceu Feminino D. Guiomar de Lencastre se tinha acabado de construir. Apesar de ter gostado imenso do liceu (ou talvez por isso mesmo...), reprovei no primeiro ano, o que não agradou nada aos meus pais. Nos anos seguintes fui crescendo e passando de ano para ano no liceu, e a começar a tomar gradualmente consciência da realidade colonial em que vivíamos. 


Hora de saída das aulas no Liceu Paulo Dias de Novais, 1968

A configuração do Liceu Paulo Dias de Novais era na forma de um rectângulo com a frente para a antiga Rua da Misericórdia, em frente à entrada sul do Parque Herois de Chaves,  e com as traseiras para a antiga Rua Henrique de Carvalho, que ligava o largo  do Hospital ao Bairro do Saneamento e edifício da Imprensa Nacional, logo antes da Igreja de Jesus. No lado este do rectângulo (junto ao quartel General) estava a secretaria e o ginásio, com os balneários atrás, e as salas de aula ao longo do lado de trás (antiga Rua Henrique de Carvalho) e Travessa da Misericórdia. Como disse, o edifício e terreno do Liceu Paulo Dias de Novais eram já antigos e eram uma adaptação da função anterior de liceu feminino. Assim, no terceiro ano, o edifício central onde funcionava a reitoria e outros serviços, foi demolido para dar lugar a um grande espaço aberto onde se podia jogar à bola. Dessa antiga estrutura só se salvou o chamado "pombal", que era uma sala sózinha no segundo andar, que servia como sala de aulas para canto coral, cuja escada de acesso era muito longa e íngreme. No rés-do-chão do mesmo edifício eram situadas as casas de banho e a cantina. Nota - Em 1971, o Liceu Paulo Dias de Novais mudou-se para modernas instalações perto do Colégio dos Maristas, na Estrada de Catete, passando a funcionar aí como um liceu misto de rapazes e raparigas.

 
Um dos miradouros do Parque Heróis de Chaves, Luanda, 1960s

No Liceu Paulo Dias de Novais tive excelentes professores que despertaram em mim o gosto em aprender, ao mesmo tempo que com os amigos de Bairro ou de Liceu fazíamos as maiores tropelias, das quais ainda me lembro em especial do pobre Palhinhas (que vivia só (mas com 23 gatos!) numa casa abandonada junto ao Cinema Restauração, na Avenida Álvaro Ferreira - do Hospital (hoje Avenida do 1º Congresso), onde mais tarde foi construída a nova sala de cinema "Studio" anexa ao mesmo cinema), e da Joana Maluca, uma demente muito popular que andava pelas nas ruas de Luanda desse tempo.

Há acontecimentos na vida que pela sua relevância ficam connosco para sempre. Assim é o caso do assassinato do Presidente Kennedy, que foi assassinado a 22 de Novembro de 1963. Eu tinha nessa altura 13 anos, e apesar de não ligar ainda à política, lembro-me que foi uma notícia de choque para mim. Eu estava a brincar com alguns colegas do Liceu Paulo Dias no jardim que tinha a estátua de Mouzinho de Albuquerque, situado à frente ao Quartel General quando um colega veio a correr e disse que o presidente da América tinha acabado de ser morto no Texas. Ainda hoje me lembro o sentido de choque que a notícia me deu e o sentimento de não compreender porque tais acontecimentos têm lugar.


Igreja de Nossa Senhora do Cabo,
na Ilha de Luanda, pintura de Garcia Marques, 1940

O Liceu Paulo Dias de Novais oferecia as disciplinas do antigo 1º ao 5º Ano, em dois ciclos - o primeiro ciclo (1º e 2º anos) com cinco disciplinas - Português, Francês, História de Portugal, Matemática, Ciências Naturais, Desenho e Trabalhos Manuais, e Educação Física, e o segundo ciclo (3º, 4º, e 5º anos) com nove disciplinas - Português (Literatura Portuguesa), Francês, Inglês, História (História de Portugal no 3º ano, e História Universal nos 4º e 5º anos), Geografia (Geografia física no 3º ano, Geografia mundial no 4º ano, e Geografia de Portugal e Ultramar no 5º ano), Matemática, Ciências Naturais (Corpo Humano no 3º ano, Zoologia no 4º ano, Mineralogia e um pouco de geologia no 4º ano, e Botânica no 5º ano), Ciências Físico-Químicas (Física no 3º e 4º anos, e Química no 4º e 5º anos), Desenho, Canto Coral, Religião Moral e Cívica, e Educação Física. Para maximizar o uso das salas de aula para o maior número possivel de alunos, as aulas eram dadas em dois turnos - de manhã (das sete e meia ao meio-dia e meia), e da tarde (da uma e meia às seis e meia), de segunda-feira até ao sábado. As aulas eram de cinquenta minutos cada uma, seguidas de um intervalo de dez minutos para recreio. 

O ano lectivo era dividido em três períodos - as aulas começavam por volta do dia 23 de Setembro e iam até três semanas antes do Natal, altura em que tinhamos três semanas de férias de Natal. O segundo período começava na primeira semana de Janeiro e ia até à primeira semana de Março, após as quais tínhamos um mês de férias. Finalmente, o terceiro período começava na primeira semana de Abril e ia até à segunda semana de Junho, após as quais tínhamos as "Férias Grandes", até ao fim da terceira semana de Setembro. Assim, durante os meses mais quentes do ano - de Dezembro a Março - nós tínhamos dois períodos de férias (para um total de sete semanas), mas as férias grandes (treze semanas) eram durante a estação do cacimbo (estação mais fria e seca), para condizer com o ano académico em Portugal. O último dia de aulas do ano era celebrado com grande fanfarra por toda a cidade pelos alunos dos liceus e escolas comercial e industrial. Por outro lado, o primeiro dia de aulas era ocasião para praxes académicas que incluiam o fazer uma carequinha nos "caloiros" (alunos que entravam pela primeira vez para os liceus e escoloas comercial e industrial), os quais tinham que "baixar a careca" perante os estudantes mais velhos e receber destes um toque na cabeça (carecada).


Cubatas Axiluanda na Ilha do Cabo, Luanda, 1956

O Liceu Paulo Dias de Novais situava-se numa das zonas mais antigas da cidade, abrangendo os antigos bairros da Cidade Alta, Saneamento, Bairro dos Ferreiras, Maianga, Samba, Praia do Bispo, Hospital, Coqueiros, e Baixa. Mesmo perto do Liceu, situava-se o Parque Heróis de Chaves, com uma área verde muito grande delimitada pela Rua da Misericórdia a oeste, rua e beco do Casuno a norte, e Avenida do Hospital a leste e sudeste. O Parque Heróis de Chaves (hoje Parque da Liberdade) era uma das zonas verdes mais extensas de Luanda, com jardins muito cuidados e bonitos, com muitas árvores frondosas e muita sombra, muitos passeios e com uma estufa fria muito linda. Mesmo junto ao parque havia dois campos de futebol, um junto à Escola José Anchieta de terra batida, e o outro, de pavimento asfaltado ao fundo do Beco do Casuno, onde os grandes encontros de futebol do "Paulo Dias" tinham lugar a qualquer hora. Já perto do jardim onde se encontrava a estátua de Mouzinho de Albuquerque (em frente ao Quartel General da Região Militar de Angola), havia um campo de basquetebol, todo cercado de rede metálica, onde o Sporting Clube da Maianga treinava as suas equipas de juvenis. Naturalmente, o parque era muito usado pelos alunos do Liceu Paulo Dias nas horas de folga e nas horas de "fuga" às aulas.
 
 
O antigo Liceu Central de Luanda (1919), mais tarde Liceu Salvador Correia (até 1942)

Cabe aqui referir que havia na vizinhança do Jardim Mouzinho de Albuquerque e da Avenida do Hospital dois edifícios antigos importantes na Luanda de duas gerações antes: o do Liceu Central de Luanda, primeiro liceu em Angola e percursor do Liceu Nacional Salvador Correia, que se situava na esquina, onde se situavam algumas repartições dos Serviços de Instrução, e o edifício da sede da Mocidade Portugesa em Angola (na Avenida do Hospital). Por volta de 1969/70, ambos os edifícios ficaram vazios com a transferência das todas as repartições dos Serviços de Educação, incluindo a Mocidade Portuguesa, para o novo complexo de edifícios do estado que se construiu a leste do Hospital Militar e da Maternidade de Luanda, à entrada da estrada de Catete. No seu lugar construiu-se um novo prédio muito grande com cerca de dez ou doze andares. Por trás desses edifícios encontrava-se a Escola José Anchieta (Nº 12) que tinha um grande espaço em frente, com os ditos campos de futebol e de basquetebol.
 
O antigo edifício da Mocidade Portuguesa, na antiga Avenida do Hospital
 
O antigo Parque Heróis de Chaves (hoje Parque da Liberdade) foi para muitos rapazes e raparigas da minha geração o lugar onde fumaram o primeiro cigarro, onde leram o primeiro livro em absoluto descanço, o lugar do primeiro beijo longo, e o lugar de onde têm as melhores memórias de namoro  com as suas "miúdas e namorados". 
 
Na rua traseira do Liceu Paulo Dias de Novais (então Rua Henrique de Carvalho que ia dar à Imprensa Nacional e ao Bairro do Saneamento, hoje Rua 17 de Setembro), mesmo junto ao complexo da antiga Messe dos Oficiais do Exército Português, havia uma barroca muito funda, longa e íngreme, que era um dos lugares predilectos para onde os alunos do Liceu Paulo Dias iam fumar quando tínham borla de aulas ou quando fugavam às aulas. Como não podia deixar de ser, eu gostava de explorar essas barrocas, que iam até à estrada que ligava o Bairro da Samba à Praia do Bispo, onde hoje se situa o monumento ao Presidente Agostinho Neto. Um dia, no meu quarto ano, estando eu mesmo em cima da berma da barroca, perdi o equilíbrio e caí aos trambulhões até chegar ao fundo da barroca. Foi uma queda longa e horrível que me deixou bem ferido depois de bater em muitas pedras ao longo da queda, pois tiveram que me levar para o Banco de Urgência do Hospital Central (que era bem perto), onde me tiveram que consertar com mais de trinta e oito agrafos na cabeça e muitos cortes no corpo todo.
 
O acontecimento mais triste que me lembro do Liceu Paulo Dias de Novais foi a morte do nosso colega Licas (Eusébio) depois de contraír o virus da raiva de um cão raivoso que o mordeu duas semanas antes. O Licas, que morava no Bungo, era muito popular, pois para muitos ele era o melhor jogador de futebol do liceu (se bem que outros davam esse título ao Dédé). Para tornar esse acontecimento ainda mais trágico, o pai do Licas teve um ataque cardíaco e morreu ao tomar conhecimento da morte do seu filho. A morte de ambos foi muito sentida no liceu. 

Quando ainda vivíamos na Damba eu também fui mordido por um cão raivoso, quando estava a brincar no quintal com o meu irmão Rui. Mais uma vez foi ele quem me salvou pois para me defender do cão, ele atirou-lhe uma telha de barro bem pesada com tanta força que matou o pobre animal. Levaram-me a mim e ao cão imediatamente ao hospital e concluiram que o cão estava raivoso, pelo que tive de tomar injecções de soro anti-rábico na barriga todas as manhãs durante os próximos trinta dias, com uma seringa tão grande que parecia mais um copo (bem longo) de beber água, e com uma agulha ainda mais grossa. Lembro-me que durante esse tratamento a  minha barriga inchou em vários pontos.
 
Dois estudantes portugueses em uniforme da Mocidade Portuguesa



 
Como estudante do Liceu Paulo Dias de Novais, nós tínhamos de participar uma vez por semana nas actividades da Mocidade Portuguesa (MP) Esta era uma organização estatal de raíz fascista pré-militar para a juventude, que oferecia também outras actividades como campismo, desportos náuticos (remo e vela), aeromodelismo, cursos de portugalidade, e outras. Nessas actividades, nós tínhamos de estar fardados com o uniforme da Mocidade Portuguesa (cação castanho, camisa verde, emblema da MP, e cinto com o "S" de Salazar). Consoante o progresso do aluno ou aluna, haviam postos de hierarquia a saber, membro não graduado (raso), Chefe de Quina, Arvorado em Comandante de Castelo, Comandante de Castelo,  Comandante de Bandeira, e Comandante de Falange (o mais alto posto). A Mocidade Portuguesa tinha duas grandes divisões: a masculina (MP) e a feminina (MPF). O parque de campismo na zona da Floresta da Ilha de Luanda era o lugar onde os acampamanentos tinham lugar, onde, com muita frequência, os popualares "gambuzinos" afectavam os mais inocentes. Eu fui a três acampamentos da Mocidade Portuguesa na Floresta da Ilha e na área da praia de Belas, a sul de Luanda. O pavilhão náutico da Mocidade Portuguesa na Ilha de Luanda oferecia o melhor equipamento e programas para desportos náuticos como natação, vela, e remo. A Mocidade Portuguesa operava também as colónias de férias no litoral, que traziam a praia a muitos estudantes do interior de Angola, dos quais se destacava a Colónia de Férias na Ilha de Luanda.

Dos professores que tive no "Paulo Dias", realço o seu primeiro reitor Dr. Álvaro dos Santos Saraiva de Carvalho, homem de grande conhecimento e iniciativa que fez uma grande obra como reitor (que tinha vindo do Liceu Salvador Correia, onde era conhecido pale alcunha de "Carapau"), a Dra. Judite Morais, professora de História, que inspirou em mim o interesse pela História, a Dra. Maria Amélia (Matemática), que dando sempre muito trabalho de casa me ajudou a abraçar a Matemática, a Dra. Paulina Bento Ribeiro (Francês), que tinham sido alunas do Liceu Salvador Correia em Luanda, e em especial o Professor Eduardo Zink (de Desenho), que me ajudou a compreender melhor a criação artística e as diversas escolas de pintura, o Dr. Polidoro de Oliveira (Português) que despertou em mim o gosto pela leitura e criação literária, e do Padre Eduardo André Muaca (Religião e Moral) pois que com os seus ensinamentos e exemplo exerceram uma grande influência positiva na minha formação como pessoa e cidadão. 
 
No Quinto Ano, como finalistas do Liceu Paulo Dias de Novais, nós organizámos uma excursão de autocarro ao centro e Sul de Angola, até Moçâmemedes que durou cerca de duas semanas. Nesta viagem, nós visitámos a vila do Dondo, Quibala, Cela, Nova Lisboa, Caconda, Sá da Bandeira, Vila Arriaga, Caraculo, Moçâmedes, Quilengues, Benguela, Lobito, Novo Redondo, e Vila Nova do Seles, da qual guardo boas recordações. 


Prédio do Antigo Hotel Angola, na antiga Avenida do Hospital,
mais tarde sede da Polícia Judiciária em Luanda

Em casa e em família, o meu nome era Dézito, mas no bairro e no liceu, eu era mais conhecido por Chinguila. Esta alcunha teve origem num episódio de brincadeira que não esqueço. Em 1963, eu tive um explicador angolano, de nome Eduardo Castelbranco, que era filho (ou neto, não estou certo) do historiador Francisco Castelbranco, que publicou a primeira História de Angola em 1932. Lembro-me que a minha mãe conhecia a sua mãe e tinha grande estima e respeito por eles, pois eram uma das famílias angolanas antigas mais respeitadas e conhecidas de Luanda. Ele morava no rés-do-chão de um prédio na Rua Guilherme Capelo, no Bairro do Café, mesmo perto da antiga Escola Comercial Vicente Ferreira. Ele era tinha à volta de trinta e cinco anos, com um corpo muito grande, era muito inteligente, e ainda mais bonacheirão ao mesmo tempo. Ele era também um angolano nacionalista ferrenho, e por isso andava a ser perseguido pela PIDE. Eu tinha explicações à tarde, e normalmente chegava sempre antes da hora, de forma que brincava com os outros alunos num terreno baldio (vazio) situado mesmo ao lado do prédio até à hora da aula começar. Uma tarde, o Eduardo Castelbranco, perguntou-me qualquer coisa relacionado com o trabalho de casa a que eu não respondi correctamente, pelo que ele me lembrou que seria melhor estudar um pouco mais, do que andar "a subir árvores por aí como um pechinguila". Daí, o termo "Pechinguila" ficou, e todos me passaram a chamar "Pechinguila". Mais tarde, usando uma palavra mais simples, alguns amigos passaram a chamar-me "Chinguila", que por sua vez, se transformou mais tarde em "Xinguila". Assim, a alcunha "Xinguila" não tem qualquer conotação com o homónimo umbundo "Xinguila", e menos ainda com qualquer acção negativa, muito pelo contrário, pois se relaciona comigo antropóide trepando árvores como um pechinguila... 


O edifício do Banco de Angola, cartão de visita de Luanda, 1960s

Já que estamos no tópico de explicadores, recordo aqui com muita saudade o engenheiro Sebastião Pessoa, que foi meu explicador de Inglês, Matemática, e ciências Físico-Químicas no Quinto Ano. Uma pessoa verdadeiramente extraordinária que me ajudou a abrir os olhos a ver o mundo menos como um espectador e mais como um agente. O engenheiro Sebastião Pessoa (sempre de cara séria, um tanto austero e estóico) teve uma influência extraordinária na minha formação como pessoa, pois despertou em mim a cusiosidade por aprender e estudar mais a fundo o mundo à minha volta, ao mesmo tempo que o fazia com disciplina mais rigorosa. O Engenheiro Sebastião Pessoa era casado com uma senhora inglesa (que não me consigo lembrar do nome) e tinha uma filha de três anos (a Michelle) que um dia caíu da varanda do terceiro andar onde viviam. Contra todas as expectativas, a pequena Michelle sobreviveu. No meio desta tragédia terrível ela teve sorte pois a velocidade da sua queda foi amortecida à medida que ela caía sobre os arames de pendurar a roupa em cada um dos três andares do prédio (e os rebentava à medida que os passava na sua queda), antes de chegar ao chão, o que amorteceu muito a sua queda.

Mais uma leva de gente no Ca Posoka para o Mussulo num fim-de-semana


13. Luanda na Década de 1960
 
No dia 20 de Abril de 1963, choveu muito mais do que o normal em Luanda o que causou  muitas enxurradas e desabamentos de terra na Baixa da cidade e alagou a maioria dos muceques. Houve alguns mortos, mas a maioria das ruas da Baixa ficaram soterradas pelas terras que se tinham desprendido ao cimo das ruas Vasco da Gama (actual rua da Missão) e Nossa Senhora da Muxima (logo abaixo do Museu de Angola. O cruzamento principal da Baixa entre as ruas Salvador Correia (actual rua da Raínha Jinga) e Pereira Forjaz (actual rua Amilcar Cabral), onde se encontravam as lojas e escritórios mais importantes da cidade ficou atolada com quase dois metros de terra, mas o cruzamento entre a calçada íngreme em que se situava a Revista Notícia (Calçada Gregório Ferreira, actual Rua Cirilo da Conceição Silva), e o princípio da Rua Direita (na vizinhança da firma Robert Hudson, então representante dos carros Ford em Angola) foram os mais afectadas com mais de três metros de terra. As obras de limpeza e reabilitação duraram meses a concluir, e um grande paredão foi construído em cimento armado mesmo a oeste da Rua da Nossa Senhora da Muxima (actual rua Giorgi Dimitrov) e leste da Rua Direita para evitar que o mesmo pudesse acontecer no futuro.


O grande buraco causado pelas enxurradas de Abril de 1963
na Rua de Nossa Senhora da Muxima em Luanda,
em frente ao antigo Colégio de São José de Cluny

Um dos passatempos preferidos dos nossos tempos de então era completar colecções de cromos sobre os tópicos mais variados. Assim, como não podia deixar de ser, eu também abracei essa onda completando várias colecções, incluindo História de Portugal, Raças Humanas, O Mundo Animal, Maravilhas do Mar, História do Automóvel, Os Dez Mandamentos, Ben Hur, e outras que agora já não me lembro. Nós comprávamos os cromos em pacotes de três por meio angolar (50 centavos), e como comprávamos muito pacotes com cromos repetidos, o mercado de troca de cromos repetidos era muito activo. Cada colecção tinha sempre alguns cromos que eram muito raros, o que fazia subir muito o preço desses cromos quando os trocávamos com amigos.
 

Antigo Brazão da Cidade de Luanda

Em termos de revistas de juventude, os mais populares eram as revistas "O Mundo de Aventuras" (de cowbois e índios), e ainda as revistas das aventuras de Tin-Tin, e a revista "Cavaleiro Andante".
Para raparigas, as novelas e fotonovelas da Agência Portuguesa de Revistas, eram as mais populares. Uns anos mais tarde, à medida que nos tornavamos mais "adultos", lía-se também muito a revista "Plateia", de que eu não era um fan fervoroso.

Plano da cidade de Luanda em 1816, com vista da Baía e edifícios principais

Para muitos de nós o evento mais importante do ano era o famoso Grande Prémio de Angola (Circuito da Fortaleza) organizado anualmente pelo ATCA (Automóvel e Touring Clube de Angola). O nosso primeiro ídolo foi Álvaro Lopes, que ganhou as primeiras corridas, seguido de António Peixinho e Nicha Cabral, e Silveira Machado. O Grande Prémio de Angola cresceu de dimensão e importância tornando-se um dos mais importantes provas de competição de carros em África, atraindo muitos automobilistas de renome como Lucien Bianchi e David Piper e marcas Fórmula 1 como a Porsche, Ferrari, e Lotus, e outras. Eu lembro-me que o bilhete de entrada para as corridas era caro, mas nós arranjámos sempre maneira de assistir às corridas de borla (sem pagar).


O Grande Prémio de Angola - Circuito da Fortaleza em Luanda, 1967
(o Sobrado a que me referi no começo deste blogue,
pode ver-se claramente à esquerda nesta fotografia)

Os desportos mais populares nesse tempo era o futebol, basquetebol, hóquei em patins, futebol salão, andebol, voleibol, natação, vela, remo, e ténis. Para além do Sporting Clube da Maianga, os principais clubes de Luanda eram o Sporting Clube de Luanda, o Sport Luanda e Benfica, o Clube Atlético de Luanda, o Futebol Clube de Luanda, o Clube Ferroviário de Luanda, o Futebol Clube Vila Clotilde, o Centro Desportivo Universitário de Angola (CDUA), e o Atlético Sport Aviação (ASA). Em geral, o Sporting e o Benfica dominavam a maioria das modalidades de desporto, mas o Vila Clotilde tinha boas equipas de basquetebol, e o ASA tinha uma boa equipa de futebol. Angola foi durante alguns anos campeã nacional de hóquei em patins graças às excelentes equipas em Moçâmedes (Atlético e Sporting) e Lobito (Lobito Sports Clube). Em termos de desportos aquáticos, nós tínhamos em Luanda (no Clube Desportivo Nun'Álvares e Clube Naval de Luanda) excelentes nadadores e velejadores. Devido à qualidade  (e popularidade) do desporto da vela, ralizou-se em Luanda em 1969 o Campeonato Mundial de Snipes, em que os angolanos Paulo Santos e Fernando Silva conquistaram a medalha de bronze qualificando-se em terceiro lugar. O Clube de Ténis de Luanda (no bairro dos Coqueiros) também tinha tenistas de renome, mas era um clube manifestamente elitista. O Clube de Caçadores de Angola era mais um clube social do que desportivo, mas que oferecia bons torneios de tiro aos pratos e aos pombos, e organizava a festa de passagem de ano mais desejada em Luanda - o reveillon do Clube dos Caçadores.
 
Lembrando o Clube Desportivo Nun´Álvares, não esqueço que um dia megulhei de chapa a toda a velocidade e às cegas na piscina não sabendo que havia apenas cerca de trinta centímetros de água. Maluquices que nunca esquecemos... Felizmente "aterrei" bem de "chapa perfeita" e nada de mal aconteceu.
  
Por falta de instalações próprias, as equipas do Sporting Clube da Maianga treinavam em locais diferentes (futebol no campo do ASA (Atlético Sports Aviação, situado para além do Aeroporto), basquetebol nas antigas instalações do Sport Luanda e Benfica (entre o Rádio Clube e o Cinema Tropical, que mais tarde mudou para nova sede e campos no Eixo Viário), e hóquei em patins no estádio da Ilha, junto ao Clube Nun'Álvares. Contudo, já em 1972 o Sporting Clube da Maianga construiu instalações desportivas próprias na zona do Rio Seco, mesmo atrás de onde se situava a nossa casa. Para o Maianga esta importante iniciativa foi a realização de um sonho de há muito anos para os seus sócios e atletas.

Se bem que não tão popular como o cinema, o teatro ainda tinha um número de fans em Luanda, sendo o Cine-Teatro Nacional, mesmo abaixo do Largo Afonso Henriques (também conhecido como largo da Obras Públicas, pois era onde se situava a sede desse departamento do governo)
Nos nossos anos de juventude em Luanda ainda não havia televisão, pelo que a rádio era a fonte de informação preferida e o cinema era a forma de entertenimento mais popular em Luanda. Havia quatro emissoras de rádio (o Rádio Clube de Angola, a Emissora Oficial de Angola e a Voz de Angola (ambas operadas pelo governo), e a Rádio Eclésia (Emissora Católica de Angola), operada pela Igreja Católica. 
 
O cinema era a forma de entertenimento mais popular em Angola desse tempo. Havia dois tipos de cinemas em Luanda: as salas de cinema propriamente ditas e as esplanadas de cinema. A melhor sala de cinema era o Cinema Restauração, construído em 1953 na Avenida do Hospital.O cinema Cine Bar Dancing Tropical na Avenida Brito Godins (actual avenida Lenine) era um cine-dancing, onde as pessoas se sentavam como se estivessem num bar, podendo mandar vir comida e bebidas, ao mesmo tempo que viam o filme. O cinema Tropical podia facilmente reconfigurar-se num grande salão de dança, onde se organizavam grandes bailes e casamentos. O Cine-Teatro Nacional, situado junto ao Largo Dom Afonso Henriques, era o cinema mais antigo de Luanda e onde as peças de teatro tinham lugar. O Cine Colonial, no Bairro de São Paulo era o cinema para as massas mais pobres da cidade, onde os espectadores avisavam os artistas de cowboys no ecran da presença de bandidos (ou Índios) prontos a os matar. Em termos de cine-esplanadas, o Cine-Esplanada Miramar era o mais belo de todos, muito bem ajardinado e  com vistas magníficas da baixa da cidade, da avenida Marginal, e da Ilha de Luanda. O Cine-Esplanada Aviz, no Bairro de Alvalade era também muito bom, mas não tinham vistas espantosas que o Miramar oferecia. O Cine-Esplanada Tivoli, situado no Bairro Azul (Samba) também muito bonito, mas mais pequeno que o Miramar e o Aviz, servia os bairros sul de Luanda. O último grande cine esplanada a ser construído em Luanda foi o Cine-Esplanada Império, à entrada do Bairro da Vila Alice, perto da Escola Industrial de Luanda. O Cinema Império era muito bonito e muito grande com dois paineis muito grandes pintados em cada lado do ecran pelo nosso professor de desenho no Liceu Paulo Dias de Novais, professor Eduardo Zink. Já na década de 1970, mais salas de cinema e cine-esplanadas foram construídoss como o Studio (junto ao cinema Restauração), o Cine São Paulo, o Cine Kipaka no Bungo, a esplanada Ngola Cine, e outros, que eram mais pequenos e mais cinemas de bairro e clubes recreativos. Haviam nesse tempo duas firmas distribuidoras de filmes em Angola: a Angola Filmes Limitada, que eram os proprietários dos cinemas Restauração, Império, Tropical, Nacional, e Colonial, e a Cine Angola Limitada que era proprietária dos cinemas Miramar e Avis. Os filmes eram apresentados geralmente à noite (soirée) durante os dias de semana, mas ao fim de semana também ofereciam sessões à tarde (matinée). A sala de cinema Stúdio, adjacente ao Cinema Restauração, oferecia também segundas sessões à Sexta e ao Sábado, que começavam perto da meia-noite. Ao sábado, o Cinema Restauração oferecia o popular evento de variedades "Chá das Seis" onde vinham actuar os artistas mais populares de Luanda, e se realizavam concursos que ofereciam aos espectadores bons prémios e bom dinheiro.
 

O Cinema "Restauração" em Luanda, 1970s. Anexo,
ao lado esquerdo, estava o novo cinema "Studio"

Dito tudo isto, o cinema onde eu ia com mais regularidade e frequência era a cine-esplanada do Sporting Clube da Maianga, onde fui atleta, situado na Rua João Seca mesmo à frente da nossa casa, que oferecia filmes quatro vezes por semana (terça-feira, quinta-feira, sábado, e domingo), e como eu era atleta do clube, eu tinha entrada gratuita para os filmes. A esplanada de cinema do Sporting Clube da Maianga oferecia somente filmes que já tinham sido apresentados anteriormente noutros cinemas em Luanda, pois por norma comercial os filmes novos só se estreavam nos grandes cinemas da cidade. Ao domingo à tarde, o Sporting Clube da Maianga oferecia um matinée dançante, que era muito concorridapelos jovens do bairro e não só.

 
O popular actor mexicano de cinema Cantinflas (Mário Moreno),
muito popular nos cinemas de Luanda na década de 1960s (1963)
 
Em termos de teatro, o Cine-Teatro Nacional (o mais antigo cinema de Luanda) foi durante muito tempo o único teatro em Luanda, se bem que fosse mais um cinema do que um teatro. Contudo, o antigo Nacional era onde as revistas de teatro portuguesas eram apresentadas quandi vinham a Luanda, e era onde o Grupo de Teatro Infantil Cremilda Torres oferecia peças de teatro infantil ao domingo à tarde. Já nos fins da década de 1960s, o Teatro Avenida foi construído ao fundo da Avenida dos Restauradores de Angola (actual avenida Raínha Jinga), passando a ser a única casa de espectáculos  exclusivamente dedicada ao teatro em Luanda. A vida noturna era relativamente activa com muitas boates (night-clubs) muito concorridos por jovens, e alguns que atendiam a uma clientela mais adulta.
 
 
O antigo Teatro de Luanda, substituído em 1969 pelo Teatro Avenida

Em termos de influência cultural, a sociedade angolana desse tempo estava sujeita a duas fontes de influência primordiais que se degladiavam abertamente no quotidiano, e de duas fontes secundárias. As duas fontes principais eram a luta pela sobrevivência da cultura ancestral e tradicional dos povos de Angola e da expansão da cultura crioula por um lado (uma vertente um tanto nativista, dita "angolense"), e por outro do esforço de "portugalização" através do esforço português de dominação colonial. As duas fontes secundárias incluiam a influência cultural brasileira e latina de um lado, e da importação de padrões  culturais de pop-culture internacional.
 
 
Raúl Indipo e Milo MacMahon em Luanda (o famoso Duo Ouro Negro)
 
O que passava no quadro da música é um exemplo bom deste conjunto de influências: em Angola ouvia-se nas estações de rádio muita música angolana sendo o Duo Ouro Negro e Ngola Ritmos os mais populares, e cantores de renome como a Lilly Tchiumba, Sara Chaves, Dinah Jardim, Conchita Mascarenhas, Fernanda Ferreirinha, Eleutério Sanches, Carlos Nascimento, e outros. 
 
 
O popular conjunto musical "Os Jovens", Beto Catela à frente, 1966

Os conjuntos de musica pop mais populares eram "Os Rocks", "Os Jovens", e "Os Windies". A música crioula de Cabo Verde (Morna e Coladera) era també muito popular, sendo o conjunto "A Voz de Cabo Verde" e o seu vocalista Bana os que mais destaque tinham, se bem que se ouvissem muito na rádio músicas baseadas na poesia de Eugénio Tavares (quem esqueçe Ó Mar Eterno?) Havia também muita música portuguesa (fado, música popular, e música folclórica, Amália Rodrigues, Alfredo Marceneiro, Max, Teresa Tarouca, Tony de Matos, Lucilia do Carmo, Maria Teresa de Noronha, Carlos do Carmo, Teresa Silva Carvalho e outros), uma boa quantidade de música popular brasileira e latina (Samba, Bossa Nova, e Tango, Ângela Maria, Roberto Carlos, Carlos Gardel, Los Índios Tabajara, Los Machucambos, Los Panchos, e outros), e música internacional (pop-music (americana, francesa e italiana), Elvis Presley, Charles Aznavour, Adamo, Gianni Morandi, Beatles e outros), orquestras (Mantovani, Ray Conniff, James Last, e outras) e música clássica, todos contribuindo para o todo cultural angolano mais expandido então em contínuo desenvolvimento.
 

O famoso conjunto N'Gola Ritmos - Liceu Vieira Dias, Nino Ndongo, Bélita Palma, Amadeu Amorim, Lourdes VanDunen, e Zé Maria

Desde os muito cedo que se ouvia muito música em nossa casa, pois a nossa Mãe adorava música, especialmente música clássica, e ela incutiu em nós o gosto pela música. Como resultado disso, o meu irmão Rui tocava gitarra muito bem e era membro de um conjunto musical, e a minha irmã Ema completou o curso de piano do Conservatório de Música de Lisboa. A minha irmã Dilar tinha uma colecção muito extensa de discos LP. Eu gostava muito de ouvir música clássica no Programa 2 da Emissora Official de Angola sempre que podia. Para mim, as obras mais preferidas eram "O Casamento de Fígaro", de W. A. Mozart (1756-1791), a "Quinta Sinfonia" de L. Bethoven (1770-1827), a ópera "Aida" de G. Verdi (1813-1901), a "Cavalgada das Valquírias" de R. Wagner (1813-1883), a "Abertura de 1812" de P. Tchaikovsky (1840-1893), a "Sinfonia do Novo Mundo" de A. Dvorjak (1841-1904), "Madame Butterfly" de G. Puccini (1858-1924). As obras preferidas da minha Mãe era a música ligeira de A. Ketelby (1875-1959), em especial "Num Mercado Persa", e as canções do grande tenor Mário Lanza (1921-1959), em especial "Be My Love" e "Oh Paradiso", que eu ainda hoje continuo a ouvir sem me cansar nunca. 
 
É curioso, mas eu nunca pensei na influência que a música clássica havia de ter para o resto da minha vida, mas o certo é que um dos maiores prazeres que tenho na vida até hoje é ouvir calmamente peças de música clássica, o que tento realizar todos os dias, não importando quantas vezes ouço a mesma peça. Eu penso que a música, não só clássica mas também a popular, me ajudou a transbordar o horizonte da minha mente para uma dimensão mais universal, do todo fechado e controlado que era Angola.

O edifício do antigo Museu de Angola

O Museu de Angola, situado na Rua Nossa Senhora da Muxima, mesmo em frente ao Colégio de São José de Cluny (edifício construído em 1948 e hoje usado pela  Universidade Católica de Angola) e logo abaixo do Mercado de Quinaxixe, para quem quizesse aprender um pouco mais acerca de Angola, era a melhor institutuição a visitar, com uma secção de cinegética (animais selvagens embalsamados) muito boa, com uma amostra muito impressionante dos animais selvagens mais comuns em Angola. De igual modo, mas não tanto impressionante, havia uma secção etnográfica onde havia uma amostra razoavel de utensílios e arte indígena dos diversos grupos étnicos de Angola. O Museu de Angola tinha também uma sala de conferências onde se realizavam colóquios importantes.

 
Antigo monumento aos Mortos da Grande Guerra, Largo dos Lusíadas (Quinaxixe, Maria da Fonte), em Luanda, 1940s

Mais na temática de história de Angola, a Fortaleza de São Miguel, se bem que não aberta ao público como um museu pois era um forte militar, tinha uma colecção de azulejos muito única mostrando os momentos mais importantes da história dos portugueses em Angola. No campo das artes plásticas, o centro de exposições do CITA, na baixa de Luanda, oferecia numa base regular exposições de artistas locais e estrangeiros. O Instituto de Angola, na calçada de Santo António, situado em frente às instalações da antiga Rádio Eclésia, era também uma instituição cultural muito apreciada em Luanda.


Bilhete de avião da DTA, 1970

Entre Dezembro e Março, nós íamos sempre à praia. Quando o meu pai estava em Luanda, íamos (toda a família) com ele de carro, de outra forma íamos (eu e o meu irmão Rui e mais amigos do Bairro da Maianga) de autocarro de casa até à para a Mutamba (linha 3), a pé até ao largo Dom Fernando (entre os CTT e o prédio do snack-bar Polo Norte)  e daqui para a Ilha (linha 9). Devido ao trânsito e as duas linhas de maximbombo que tínhamos de usar, nós tinhamos de ir muito cedo e voltávamos já bem à tarde. Nós normalmente ficávamos a princípio da Ilha, pois a viagem de carro ou de autocarro podia demorar horas com o trânsito muito vagaroso, pois milhares famílias faziam o mesmo que nós. Lembro-me que o meu Pai tinha dois lugares predilectos para almoçar na Ilha de Luanda, o s restaurantes Restinga, Mar e Sol e Tamariz, mesmo à entrada da rotunda da Ilha, onde serviam pratos de marisco muito bons. O restaurante Mar e Sol era uma esplanada aberta de dois andares muito bonita, rodeada de palmeiras e outras plantas que o separavam do burburinho da rua.

 
Antiga Avenida dos Combatentes - à direita encontrava-se a estação dos correios onde íamos buscar o correio e na esquina estava a Cervejaria Mónaco

Lembro-me que a minha Mãe nos relembrava que tínhamos de poupar dinheiro durante a semana para ter dinheiro para pagar o bilhete de maximbombo para a Ilha (linha 9). De facto, como nós ainda tínhamos a caixa postal na estação dos correios da Avenida dos Combatentes, junto à antiga Cervejaria Mónaco, a minha Mãe dáva-nos dois escudos (um escudo para mim e um escudo para o meu irmão Rui), para irmos a pé (da Maianga à Avenida dos Combatentes) todas as semanas buscar o correio à estação dos Combatentes. 
 
Com o meu Pai íamos sempre de carro também à praia da Ilha da Chicala (antiga Ilha da Cabeleira, situada em frente ao bairro da Praia do Bispo), à praia da Corimba, à praia das Palmeirinhas, à Ilha do Mussulo, e à Praia de Cabo Ledo. Durante as férias de Março íamos com frequência à praia da floresta da Ilha, e à praia do São Jorge, e à praia da Ponta da Ilha, mais tarde designada como a praia da Barracuda.


Já que estamos a falar de transportes, lembro-me que o meu pai ao longo do tempo teve vários carros: uma carrinha Ford F-35 de cor azul clara, na Damba, e em Luanda teve primeiro um Saab 96 (modelo 1958), um Plymouth Fury (modelo 1959), um Renault Gordini (1962), e um Peugeot 203 (1962). Quando mudámos para Cabinda, ele tinha um Holden (1967, carro fabricado pela General Motors na Austrália), um Jeep Willys amarelo (do tempo da Segubnda Guerra Mundial, mas muito bem estimado), e um jeep Land Rover de cabine curta.
 

O Peugeot 203, modelo 1958, igual ao do meu Pai

Já que mencionámos linhas de maximbombos (autocarros) havia quatro bases principais: Mutamba, Largo Kinaxixe, Largo Dom Fernando, e Largo Bressane Leite. Lembro-me que a linha 1 ia da Mutamba ao Palácio, a linha 2 para a Casa Branca, linha 3 para a Maianga (bairro onde nós morávamos), linha 4 São Paulo, linha 5 para os bairros da Vila Clotilde e CAOP, linha 7 do Largo de Dom Fernando para o Hospital Maria Pia e Samba, e Praia do Bispo, linha 8 da mutamba para a Vila Alice, Linha 9 do Largo de Dom Fernando para a Ilha, a linha 10 atravessava a cidade ligando a Alameda Principe Real (rua António Enes e Bairro Miramar) e o Palácio, linha 11 ligava o Largo Bressane ao porto de Luanda (através da marginal), linha 12 a Mutamba aos bairros perto do Cemitério Novo (na estrada de Catete), linha 13 ligava o Largo Bressane Leite ao Hospital, Samba, e Praia do Bispo, linha 14 ligava o Palácio ao Bairro do Cruzeiro, linha 15 não me lembro, linha 16 ligava a Mutamba à Avenida Brasil e Terra Nova, linha 17 ligava a Mutamba ao Bairro da Cuca, linha 18 ligava a Maianga ao Largo dos Lusíadas (Kinaxixe), linha 19 não me lembro, linha 20 ligava a Mutamba ao Bairro dos Quarteis (acima do Bairro de Alvalade), e linha 21 ligava o Largo Bressane Leite à Ilha do Cabo.

Largo da Mutamba em Luanda, 1964

Entre 1961 e 1974 Luanda cresceu muito como cidade. Não só prédios novos em todo o lado, como bairros novos, cada vez mais longe do centro da cidade. Contudo, é de de notar, que as moradias individuais da década de cinquenta deram lugar a prédios de apartamentos nas décadas de Sessenta e Setenta. Muitos destes prédios foram construídos pors duas cooperativas de habitação - "O Nosso Abrigo" e "O Lar do Namibe".


14. Bairro da Maianga
 
Nos anos da década de Sessenta, o Bairro da Maianga era um bairro de famílias europeis e africanas relativamente pobres e remediadas mas de grandes pergaminhos em Luanda. Tinha à sua volta um número de bairros em que as famílias tinham muito mais posses - Bairro do Café, Bairro de Alvalade, Cidade Alta, Samba,) e menos posses (Catambor e Prenda), mas nenhum deles tinham as tradições da Maianga. Lembro-me que nós (os miúdos) éramos muito engenhosos pois fazíamos os nossos próprios briquedos como arcos de aduela de barril, trotinetas e carros de rolamentos de madeira, enquanto que nos bairros à nossa volta os rapazes e raparigas com mais posses já tinham bicicletas. Atrás de onde vivíamos havia uma Zona Verde muito grande e muito arborizada ao longo do Rio Seco, que funcionava como um pulmão verde entre os bairros do Café (ruas Guilherme Capelo, actual Rua Kwame Nkrumah) e Rua Cabral Moncada (actual Rua Eduardo Mondlane), Maianga (Rua 28 de Maio) e perímetro baixo do Bairro de Alvalade.
 
O antigo Hospital Maria Pia em Luanda, construído por Henrique de Carvalho (1865-1883) no local do antigo Convento de São José, no cimo da Samba
 
Era na encosta da Maianga, que separava a área baixa de Luanda do plateau acima dos bairro de Alvalade e Prenda (o plateau onde se situa o Aeroporto de Luanda) que se situavam em tempos passados duas das três famosas e históricas cacimbas (poço/fonte de água), a saber, a Maianga do Rei, a Maianga do Povo, e a Lagoa do Kinaxixe. De facto, o termo "Maianga" tem origem no termo Kimbundo "Muazanga / Mayanga", o que significa lagoa (lençol de água / lagoa / charco criado pela água da chuva.

A antiga Maianga do Rei

 A mais antiga cacimba pública (maianga) de Luanda foi a Maianga do Rei, que foi estabelecida pelo Governador Manuel Cerveira Pereira, quando governou Angola entre 1603-07 na encosta do Prenda (a oeste da antiga Avenida Lisboa) para fornecer água aos moradores portugueses da Cidade Alta de Luanda, e para servir o antigo Convento de São José, onde mais tarde se veio a construir o Hospital Maria Pia (actual Hospital Josefina Machel), no alto da Samba.

A segunda cacimba, a Maianga do Povo, foi criada pelo Governador Salvador Correia de Sá e Benevides, quando ele governou Angola entre 1648 e 1651, situada no Bairro do Catambor já perto da Samba, mais acima na antiga Avenida António Barroso (acima do Supermerado Martal (Martins & Almeida de antigamente).
 
A antiga Maianga do Povo

O excesso de água das duas maiangas (do Rei e do Povo) corria para a Lagoa dos Elefantes, já situada na Samba ao longo do percurso do que viria a ser mais tarde a parte mais baixa do Rio Seco.
 
Infelizmente, quando nós lá vivemos nos anos Sessenta, as cacimbas da Maianga já não funcionavam, pois tinham sido desactivadas em 1948 e designadas como património histórico em 1949, como resultado do fervor à volta das celebrações do Tricentenário da Restauração de Luanda em 1948. Mais tarde, já depois da Independência, ambos os monumentos foram esquecidos e foram eventualmente absorvidos pela expansão urbana e parcialmente destruídos, dos quais infelizmente restam apenas alguns vestígios, conforme a figura abaixo.
 
 
Vestígios da Maianga do Povo, agora absorvida pela expansão urbana e não defendida como património histórico de Luanda

A terceira cacimba foi a Lagoa do Kinaxixe, estabelecida pelos padres Carmelitas Descalços em 1670, acima dado Convento e Igreja do Carmo, que fornecia água aos residentes das Ingombotas e Maculusso de então. Foi no bairro das Ingombotas que se estabeleceram os primeiros muceques de Luanda e os grandes quintais onde se guardavam os escravos. Mais acima, já no plateau, encontrava-se o grande cemitério de escravos do Maculusso (das Cruzes - Ma Culusses). 

Já que nestamos no tópico de abastecimento de água a Luanda de outros tempos, cabe referir que a maior parte da água usada pelos residentes da Baixa de Luanda vinha do Rio Bengo, a cerca de vinte quilómetros norte, que era trazida até à cidade em barris e puxada a bois ou por escravos.
 
Quando eu morei no bairro da Maianga, havia um outro poço privado de água (não para consumo público da população, pois em tempos idos se vendia água ao barril), que se situava logo abaixo do Largo da Maianga, no princípio da antiga Avenida António Barroso, não muito longe de onde era a antiga estação dos Correios, no local da antiga Horta do Raposo (também já inexistente), onde eu um dia encontrei um lagarto morto muito grande (com mais de um metro de comprimento), mais do tamanho de um iguana.

Bairro da Maianga, a Rua 28 de Maio (actual Karipande)  é à esquerda (arborizada)
 
Nós morávamos numa casa à entrada da Rua 28 de Maio. O nome da rua era em evocação à revolta liderada pelo general Sidónio Pais que estabeleceu o regime de Oliveira Salazar (o Estado Novo), que teve lugar em Lisboa ea 28 de Maio de 1926. Muito embora mais de sessenta e cinco anos se tenham passado, vou tentar descrever em pormenor o universo dos nossos vizinhos e amigos (quem vivia e aonde nessa altura em que lá vivemos), ciente de que me possa estar a esquecer de alguém, pelo que peço desde já desculpa pela omissão não intencionada e agradeço também desde já a correcção. A casa era geminada e alugada e o senhorio era o Sr. Alípio Pires, então já reformado depois de ter trabalhado muitos anos para o Tribunal da Relação de Luanda. Ele tinha duas filhas mestiças talvez dez anos (ou mais) mais velhas do que nós. Nunca soube o nome delas. A nossa casa tinha um pequeno quintal à frente e outro atrás (ambos acimentados), este também pequeno e com uma goiabeira plantada no centro. Atrás do quintal havia um anexo que estava arrendado a uma família (pai, mãe e filha) em que o pai trabalhava na construção civil. Infelizmente, já não me lembro do nome deles.
 
À entrada da rua junto à bifurcação com a Rua 5 de Outubro, do lado esquerdo de quem entra do lado da rua da nossa casa) viviam os o Carlos Russo e irmã Laura e o Jorge Pinho que era hospedado e que a família vivia um pouco a sul da Ilha do Mussulo. O Carlos Russo e a Laura eram alunos da Escola Comercial, e o Jorge Pinho era um aluno muito bom do Instituto Industrial de Luanda. O nome da rua 5 de Outubro era em evocação à revolta de 5 de Outubro de 1910, que acabou com a monarquia e estabeleceu o sistema republicano em Portugal.
 
O Afonso (de alcunha "Fininho" porque era muito magro e alto) e a sua irmã (que não me lembro do nome mas que era muito bonita e reservada) moravam no rés-do-chã da próxima casa que era geminada.  Não me lembro das famílias que moravam nas duas moradias no primeiro andar. A próxima casa era a nossa, que era geminada. O Joca Oliveira morava no nº. 7 e nós morávamos no nº.9. O pai do Joca, o Sr. Hernani Oliveira tinha uma oficina de reparação de automóveis (bate-chapa), e a Mãe do Joca era a Dona Carolina, que era muito nossa amiga e muito nos ajudou. 
 
Na casa imediatamente a seguir à nossa viveu em 1961 e parte de 1962 o Morgado, que depois a família se mudou para a Avenida Lisboa, nuns anexos, perto do Largo da Maianga e mesmo opostos à Cervejeria Mexicana. Esses anexos foram demolidos mais tarde para dar lugar a um prédio grande em arco a acompanhar o Largo da Maianga. A mãe do Morgado era enfermeira e o pai era escultor, natural da Ilha da Madeira.

Nuns anexos atrás da casa do Sr. Alípio Pires vivia o Dimas e a sua familia. O pai era sargento do exército e ele tinha um irmão mais novo de quem não me lembro do nome. Na casa (muito bonita) a seguir vivia uma família de bem que não tinha crianças; vivia lá uma senhora de idade que era parente dos donos da Casa Popular na Baixa de Luanda. Logo a seguir vivia a Isabel (da nossa idade) que era filha única e que não brincava muito com as crianças da vizinhança. Na ca sa a seguir vivia o Américo e a irmã que eram mais velhos que nós uns seis ou oito anos. A seguir era a Carpintaria e Serralharia Padinha que empregava muita gente. 
 

Estátua de Salvador Correia de Sá e Benevides, Largo do Palácio, 1960s

Logo a seguir era a casa do Alfredo (Frédito) Figueiredo (da nossa idade) e da irmã Filomena, que era uns quatro a cinco anos mais velha do que nós. O pai do Alfredo era o Sr. Figueiredo, já nos seus sessenta e tal anos. O Sr. Figueiredo, que era mestiço, andava sempre de fato, chapéu e bengala, sempre muito formal, e comandava o respeito de todos nós. A família Freitas (irmãos Vítor e Fernando) viviam na próxima casa. O Sr. Freitas, pai do Miúdo Vítor, era muito magrinho, fumava muito, e tinha um quiosque no Largo da Maianga, onde vendia jornais, revistas, e tabacos. O Vítor era da nossa idade, mas o Fernando era mais velho uns quatro ou cinco anos.

A próxima casa era da família Brito (José, Xico, e Milú). A casa situava-se num grande quintal, pois o alinhamento antigo da Rua 28 de Maio não era direito, mas virava um pouco para a esquerda. Em 1966 ou 67, a família Brito mudou-se para a Samba Pequena. Logo a seguir era a casa do José Luís Bernardino e irmã Lídia (ambos da nossa idade). O pai, o Sr. Bernardino era alentejano de Almodôvar e trabalhava para a Câmara Municipal de Luanda. 
 
Duas casa depois e antes de se virar para o primeiro beco da Rua 28 de Maio, viviam duas irmãs (que nós chamávamos Misses da Maianga) que eram tias do nosso saudoso amigo Orlando Malhão Maio, que vivia na Praia do Bispo, mas que vinha com muita frequência à Maianga. O Orlando foi um colega chegado meu, pois ele andava no mesmos anos que eu no Liceu Paulo Dias de Novais e passávamos muito tempo juntos. O Orlando mais tarde arranjou uma mota antiga de marca "Ìndia" de cor preta, que captava a atenção de todos nós. Anos mais tarde, ele e a Manuela Moreira de Melo casaram e foram viver para Portugal depois de 1975. Lamentavelmente, soube que ele tinha falecido recentemente.
 
 
Residências de funcionários públicos no Bairro da Praia do Bispo, Luanda, 1960s

No beco nº 1 da Rua 28 de Maio viviam várias famílias com filhos da nossa idade. Quem subia e à esquerda havia uma prédio de dois andares em que no rés-do-chão vivia uma família com duas filhas e um filho mais ou menos da nossa idade (dos quais infelizmente não me consigo lembrar dos nomes), e no primeiro andar vivia a Manuela (muito bonita), que o pai tinha um negócio de construção de traineiras e outros barcos. Na próxima casa vivia a família Lopes (Paulette, talvez dois anos mais velha do que nós), o Predocas, e a irmã mais nova, que era também muito reservada e bonita, mas de que não me consigo lembrar agora do seu nome). O Pedrocas era um bom compincha para qualquer brincadeira. Duarante o período do Governo de Transição  e logo a seguir à Independência, a Paulette tornou-se uma pessoa muito destacada no aparelho político do MPLA.
 
Ainda no beco nº 1 da rua 28 de Maio vivia uma senhora, a Dona Ana, que fornecia ternos (comida) e que nós usámos quando a minha Mãe trabalhou para a Companhia Comercial Oriental na Avenida Marginal (perto da Igreja da Nazaré). Mais abaixo, vivia a a família da Nela (que nós chamávamos "Nela Fininha", pois era muito magra e alta). 
 
Já de volta à Rua 28 de Maio, duas casas depois vivia a família Lacerda, que tinham dois filhos (um filho e uma filha) só um pouco mais novos do que nós. O Sr. Lacerda tinha uma oficina de reparação de carros e motorizadas, e foi durante alguns anos presidente da direcção do Sporting Clube da Maianga.
 
No segundo beco da Rua 28 de Maio (também chamado o Beco do Braga) vivia o Tomané, um amigo meu muito chegado que muitos bons tempos passámos juntos. O Tomané tinha uma personalidade muito jovial e estava sempre pronto para qualquer brincadeira. Ainda no mesmo beco vivia a família do Boléo, que era talvez dois anos mais novo do que nós. Ele tinha uma irmã mais nova que não me lembro do nome. E assim chegámos ao fim do lado esquerdo da Rua 28 de Maio. Para além do fim da rua ficava a zona verde do Rio Seco.
 
No lado oposto da rua à nossa casa, ou melhor dizendo, ainda na rua 5 de Outubro viviam os irmãos Nabais (Rui e Tito, mais velhos que nós uns anos, e exímios nadadores do Clube Nun'Álvares de Luanda), e no próximo quarteirão o Jajão e a Titocas, que eram amigos muito chegados do meu irmão Rui. Já propriamente na nossa rua e em frente à nossa casa vivia o Jorge Tavares de Almeida, mais velho uns anos do que nós, mas com quem nunca estabelecemos amizade. Na esquina do próximo quarteirão vivia a família do Rui Cabral, que mais tarde (em 1964, não estou bem certo) se mudou para o Bairro da Cuca. 
 
No quintal da casa do Rui Cabral nós fizémos uma experiência muito especial. Baseado na invenção dos irmãos Lumiere (inventores do projector de filmes), nós fizemos uma máquina de projectar cinema, baseada numa caixa de cartão com uma câmara escura, um projector de luz, e uma lente, o que nos permitia projectar imagens de desenhos animados que tinhamos desenhado em folhas de papel. Esta experiência foi muito notável, pois com uma caixa de papelão, uma lente (tirada de uma garrafa de refrigerante), e uma lâmpada, e algumas páginas dcom desenhos feitos por nós próprios, nós fizémos os nossos filmes.

O popular sinaleiro do Largo da Maianga

Em 1964/65 a família Anapaz Pereira mudou-se para essa casa, depois da família Cabral ter mudado para o Bairro da Cuca. Os Anapaz Pereira tinham um filho, o Carlos, mais conhecido por Curibita, e a irmã, que não me consigo lembrar do nome, ambos da nossa idade, e, se não me engano, um irmão mais novo. Como amigo do bairro, o Curitiba substituiu bem o Rui Cabral, pois tornou-se um amigo popular entre todos. Como eu, ele andava também no Liceu Paulo Dias de Novais, e assim fomos muitas vezes juntos para o liceu. A irmã do Curitiba era reservada e muito bonita. A família Anapaz era uma das grandes famílias africanas antigas de Luanda, e conforme o que a minha mãe então me disse, uma avó do Curibita foi uma professora de música e pianista destacada na Luanda nas décadas de Trinta e Quarenta. 
 
Na próxima casa viviam os irmãos Borralho, que na altura tinham emigrado recentemente de Portugal. Infelizmente, já não me lembro dos seus nomes. Eles eram dois irmão da nossa idade, que trabalhavam já (não iam à escola), e já chegaram um pouco tarde (talvez em 1966/67). Mesmo assim, eles alinhavam muito em algumas brincadeiras, mas não eram parte do grupo central da malta da 28 de Maio. Cumpre-me dizer aqui que nós (nascidos em Angola, brancos, pretos e mestiços) mostrávamos uma certa relutância a pessoas vindas recentemente de Portugal, e usávamos até nomes depreciativos para os designar (como "besugo" ou "patego"), o que não era muito saudável.
 
Na próxima casa, uma casa de primeiro andar, vivia o Inglês, que era uns anos mais velho do que nós, e que trabalhava com frequência como bilheteiro nas sessões de cinema do Sporting Clube da Maianga.
 
Numa casa geminada a seguir, moravam os irmãos Soto Maior (Tó e Darío, que eram ligeiramente mais velhos do que nós. O Darío era um amigo chegado do meu irmão Rui, e o Tó era assistente técnico de algumas modalidades de desporto no Sporting Clube da Maianga. Ele trabalhava no CITA (Centro de Informação e Turismo de Angola) e sempre me deu muitos livros e revistas publicados pelo CITA e pela AGU (Agência Geral do Ultramar) sobre Angola em particular, muitos quais guardo hoje como tesouro. 

Na casa a seguir aos Soto Maior morava o Nélito, que era ligeiramente mais novo do que nós (dois ou três anos). Ele andava também no Liceu Paulo Dias, pelo que muitas vezes fomos juntos para o Liceu. Talvez pela sua idade, o Nélito alinhava na maioria das brincadeiras, mas não em todas.
 
 
Vista do Palácio do Governador-Geral, Cidade Alta, Luanda, 1960s

Na próxima casa geminada moravam as pérolas da 28 de Maio - as irmãs Manuela e Olga (Moreira de Melo), que eram o sonho de todos os rapazes da Rua. Elas eram muito simpáticas, de personalidade muito radiante, e extraordinariamente bonitas, e davam-se bem com todos. A família Moreira de Melo veio de Braga (Portugal) para Luanda em 1963/64, e o Pai trabalhava para a Casa da Sorte e a Mãe era modista, ambos muito simpáticos (e pacientes).
 
Na próxima casa viviam os manos Zeca e Fátinha Silva. O Pai, o Sr. Silva, tinha uma oficina de bate-chapa de carros no quintal atrás ca casa da Manuela e da Olga, e a Mãe, a Dona Cesaltina, era muito nossa amiga, pois passava tempo todos os dias a conversar connosco em frente à entrada da casa deles. O Zeca era da minha idade e andou na Escola Industrial, mas deixou os estudos e começou a trabalhar na oficina do pai ainda muito cedo. A Fatinha andava no Liceu Salvador Correia. 
 
Era em frente à casa do Zeca e debaixo de uma árvore muito frondosa era o local onde nós tinhamos corridas de carrinhos (Dinky Toys e Corgi Toys) e onde tínhamos também os buracos no chão do passeio para jogar  à bilha (berlinde). Era ainda à frente das casas do Zeca e da Fátinha e das manas Manuela e Olga que o grupo mais restrito de amigos da rua 28 de Maio se encontrava todos os dias ao fim da tarde. A Fátinha foi sempre a amiga mais especial para mim e com quem mais tempo passava a conversar. Logo que atingiu a idade necessária, o Zeca comprou um Fiat 124 (station wagon) branco muito bonito. Infelizmente, O Zeca, alguns anos depois de regressar a Portugal em 1974 foi vítima de um acidente que o deixou incapacitado de levar uma vida normal durante o resto da sua vida. Há três anos atrás recebi a triste notícia do seu falecimento.
 
Como rapazes, nós procurávamos a aventura e o perigo. Recordo que uma vez decidimos (Eu, o Zeca, o Vítor, e o Bernardino) ir acampar no Morro da Fortaleza, com o objectivo de caçar pássaros, onde na verdura da encosta muitas espécies de pássaros, incluindo periquitos de várias cores. Assim, fizémos os planos e completámos a logística, levámos visgo, fisgas e armas de chumbo, uma tenda, e alimentos para dois dias, e lá fomos. Como não tinha uma arma de chumbo, eu levei a minha fisga, devida mente construída por mim para o efeito. Como bons caçadores, nós não levámos em conta que havia no dito Morro da Fortaleza muitos cactos cheios de picos, cujas flores tinham uns picos muito pequenos ainda muito mais muito penetrantes. Com o entusiamo de chegar o mais próximo possível aos pássaros para pormos visgo (cola) nos ramos das árbores onde eles se encontravam, todos nós ficámos todos picados pelos ditos cactos, ao qual eu no meu caso não paguei muita importância. Três dias depois, eu acordei de manhã todo inchado com uma febre altíssima, não sabendo a causa. A minha Mãe levou-me imediatamente ao banco de urgência do Hospital Central,  onde pacientemente os enfermeiros tiraram uma quantidade grande de picos de flor de cacto, quase invisíveis, mas à mostra em todo o corpo. O médico disse no fim que tinha sido uma infecção generalizada causada pelos ditos micro-picos, e que podia ter sido muito mais séria, não tivéssemos nós vindo ao hospital imediatamente. 
 

A entrada do banco de urgência do Hospital Central, que eu visitei tantas vezes

Na casa logo a seguir à da família Silva vivia a Emília, filha única de pais mais velhos do que os nossos, sendo ela um ou dois anos mais velha do que nós, e que portanto não alinhava nas nossas brincadeiras. A seguir, já na esquina da rua 28 de Maio e Rua da Maianga, viviam as irmãs Pinto Pereira que não socializavam connosco. O Sr. Pinto Pereira comerciava em exportação de café, e foi graças à sua iniciativa que o cinema do Sporting Clube da Maianga expandiu a sua sala de cinema com um telhado próprio para proteger das chuvas.

No começo do próximo quarteirão vivia o Fernando (mais propriamente na Rua da Maianga) que era um ou dois anos mais novo que nós e andava na Escola Industrial. Já na Rua 28 de Maio num bloco de três casas geminadas vivia o Renato Santos, que era uns cinco ou seis anos mais velhos do que nós. Na casa a seguir vivia a Paula Correia de Oliveira, que era da nossa idade, muito bonita e atraente, e que cuja família tinha mais posses do que a média das famílias na vizinhança. Contudo, ela era muito dada e muito amiga de todos. 
 
Já no próximo prédio vivia a Fernanda Caetano, irmão do Carlos, que também fazia parte do círculo de amigos. A Fernanda veio a casar com o Tonho, que vivia na Rua 5 de Outubro. A Fernanda era um tanto reservada, mas muito simpática. Ela praticou basquetebol na equipa feminina do Sporting Clube da Maianga. O seu irmão Carlos, que era mais velho do que nós, tirou o curso do Instituto Comercial.

Na casa a seguir vivia a nossa amiga Rosário, que era filha única e tinha vindo recentemente de Lisboa, mas que também alinhava com os amigos da vizinhança. Logo a seguir vivia o Edgar Neves, que também era filho único, e que trabalhava na Baixa de Luanda. O Edgar tinha uma motorizada V5 encarnada, que era muito vistosa.

Estátua de Paulo Dias de Novais, fundador de Luanda, na Ilha do Cabo, 1960s

Entre tantos jovens vivendo tão perto e tão intensamente na vizinhança, naturalmente haviam romances e pares de namorados (mais ou menos permanentes) que se destacavam: o Zeca e a Olga, o Vítor e a Manuela, o Vítor Azevedo e a Emília, o Tomané e a Paula, e o Edgar e a Rosário. Cabe notar aqui que desses amores de juventude, nenhum acabou em casamento. Apesar de sermos todos vizinhos e amigos, haviam dois polos onde nos encontravamos mais frequência: um em frente à casa das manas Manuela e da Olga (Moreira de Melo) e do Zeca e da Fatinha, e o outro, mais acima na rua, em frente à casa da Paula Correia de Oliveira.

Apesar da Rua 28 de Maio ser o nosso universo mais imediato, nós tinhamos muitos amigos com quem privávamos com muita frequência que viviam no perímetro mais alargado do Bairro da Maianga. Na Rua Comandante Correia da Silva  tinhamos também vários amigos, incluindo o Adelino Vieira, o Mário Jorge, que vivia no outro lado do Rio Seco, e a Isabel Morna, mais abixo já na esquina com a Avenida António Barroso e em frente à agência do Banco de Crédito Comercial e Industrial vivia a Milú, que era muito bonita. Já no mesmo quarteirão da Avenida António Barrosos tínhamos os irmãos Mendes e irmãos Pugliese, e no próximo quarteirão em direcção aos Correios, o Víctor Azevedo e os irmãos Dadinho e Zeca. Na Rua 5 de Outubro tinhamos o Tiago (também já falecido), o Carlos Costa e a Ana Maria Costa, os irmãos Celso e Jorge, o Fernando Rosa Rodrigues, e o José Pedro. Um pouco mais longe, já à entrada do Catambor, tínhamos o  o Francisco Loureiro. O Mário Lourenço dos matraquilhos na Avenida  António Barroso vivia mais abaixo, perto da Padaria Aliança, onde nas noites de cinema no Sporting Clube da Maianga nós íamos comprar pão quente às onze da noite. Os irmãos Paixão (Jorge e Beto) viviam no prédio da estação de serviço da Texaco à entrada da Rua 5 de Outubro, e os irmãos Jacques Pena - João, Isabel, e Paula (também precocemente falecida) que viviam mais abaixo da Rua João Seca (próximo da esquina dos Correios com a Avenida António Barroso), o Nascimento que vivia abaixo da Rua da Maianga, a Gina, a Selda, e a Guilhermina que viviam na Travessa João Seca, e tantos outros. Um pouco mais acima, na Rua José Maria Antunes, paralela à Avenida António Barroso e já junto ao Muceque Catambor, vivia a Nini que jogava basquetebol no Sporting Clube da Maianga, e as duas suas irmãs que já não me lembro dos seus nomes.    
 
Nota - A rua, travessa, e largo João Seca evocavam a memória de João Augusto dos Santos Seca, que foi um destacado condutor de Obras Públicas e chefe da repartição técnica de Luanda na primeira década do Séc. XIX e que esteve ligado a muitos melhoramentos da cidade nesse tempo. A Rua José Oliveira Barbosa evocava a memória de José de Oliveira Barbosa que foi governador de Angola entre 1810 e 1816 que se precocupou com o problema de abastecimento de água a Luanda. A Rua Comandante Correia da Silva evoca a memória do destacado oficial da marinha portuguesa, que foi administrador do concelho de Luanda, governador dos distritos de Benguela e de Moçâmedes, e ministro das colónias em 1925. A Avenida António Barroso evoca a figura do Bispo Dom António Barroso, que se distinguiu em incluir os antigos territórios Bakongo como o distrito do Congo (português) na província de Angola no terceiro quartel do Séc. XIX. A Rua do Padre José Maria Antunes evocava a memória do Padre José Maria Antunes, da Congregação do Espírito Santo, grande evangelizador das terras longínquas do Cunene e primeiro superior da Missão da Huíla.


A velha Rua dos Mercadores, uma das ruas antigas de Luanda, 1960s

Ainda como rapazes cheios de banga, nós gostávamos de ir de vez em quando à Cervejaria Bracarense para tomar uns finos (copos de cerveja) com tremoços ou dobrada cozida com feijão a acompanhar. A bracarense era também um restaurante e uma pastelaria, famosa pelos pregos no pão (o básico que podíamos pagar...), e a pastelaria. Em frente à Bracarense, na esquina com a Rua Alexandre Peres, estava o Colégio Moderno, que a minha irmão Paula frequentou até à quarta classe. A antiga Estação de Caminho de Ferro da Cidade Alta era na Rua Alexandre Peres, onde havia um grande terreno descampado adjacente, onde uma ou duas vezes por ano havia uma feira com muitas diversões como carrossel, cadeirinhas, carrinho eléctricos, poço da morte, e outros. Outras cervejarias muito concorridas na Maianga eram a Cervejaria Mexicana e o Restaurante Belo Horizonte (muito chic), à entrada do Largo da Maianga, o Snack-Bar Planeta, junto à Chefia dos Serviços de Intendência do Exército Português, e a Cervejaria Chilena, mais abaixo na Avenida Lisboa, um pouco mais abaixo do Hospital de Doenças Mentais, que nós chamávamos Hospital dos Malucos. Quando a minha Mãe trabalhou na Companhia Comercial Oriental na Marginal, nós íamos almoçar e jantar ao restaurante do Snack-bar Planeta durante uns tempos. Por volta de 1969, o Restaurante Belo Horizonte fechou e o edifício foi convertido em Colégio Universal.

Dispersos pelas ruas do bairro da Maianga, haviam muitas árvores de fruto e de sombra, como a mulembeira, pois a maioria das ruas eram arborizadas. Das árvores de fruto, as que mais me lembro era as que davam os saborosos figos da Índia, maçãs da Índia, e tamarindos. Nos quintais das casas era comum ver goiabeiras, bananeiras, abacateiros, mamoeiros, pitangueiras, maracujaseiros, e até cajueiros. No cimo do muceque Catambor haviam alguns imbondeiros.

Pela sua curiosidade, lembro aqui o som de gaita dos funileiros e amoladores, que nas suas bicicletas de três rodas corriam o bairro de tempos a tempos para afiar facas e tesouras, ou fazer latas. Do mesmo modo, lembro aqui a tifa, que era a fumegadora dos Serviços de Saúde que todos os anos passava pelas ruas do bairro a fumegar a nuvem espessa de DDT que se dissipava casas dentro, que para o efeito as donas de casa deixavam as janelas e portas abertas para  o nevoeiro do insecticida entrar. Como não podia deixar de ser, nós delirávamos correr atrás da tifa, completamente cobertos com o fumo do DDT.
 
 
Carrinha a fumegar DDT (Tifa) nas ruas de Luanda, 1960s

Hoje sabemos que o DDT deixou de ser produzido há muitos anos por ser muito tóxico e ter sido banido o seu uso na maior parte do mundo. Na mesma linha de pensamento, o uso de folhas de Lusalite, produzido pela companhia Lupral, de Benguela, para paredes e telhados era muito usado em Angola. Da mesma forma, sabemos hoje que as fibras de asbestos são um carcinogéneo muito mortífero para qualquer pessoa que o use ou esteja exposto.


O antigo complexo do Hospial Maria Pia

Entre a Avenida da Samba e a Avenida Lisboa, os Serviços de Saúde e Higiene de Angola tinham uma área muito grande de terrenos onde se situavam o Hospital Central, o Hospital Maria Pia (com cinco pavilhões muito grandes), a Delegacia de Saúde onde se apanhavam as vacinas, a Casa Mortuária (pequena para as necessidades da cidade), o Teatro Anatómico e salas de aula da Faculdade de Medicina da Universidade de Luanda, o Pavilhão de Doenças Infecto-Contagiosas, o Hospital de Doenças Mentais, a Escola de Enfermagem, e o Centro de Reabilitação Física e Fisioterapia
 
 
O pavilhão de Doenças Infecto-Contagiosas onde estive internado 10 dias em 1972

A área era mesmo mito grande pois estendia-se desde as traseiras das casas na Rua Guilherme Capelo e ia até à baixa da Samba (antigo lugar da Lagoa dos Elefantes), ao começo da subida da Avenida Lisboa para o Bairro Prenda. 

Como toda a cidade de Luanda, em termos de urbanização, a Maianga não era estática, pois muitos prédios novos se construiram entre 1961 e 1975, especialmente à volta do Largo da Maianga e ao longo da Avenida António Barroso, que mudaram muito a personalidade do bairro, especialmente do lado do Alvalade e do Catambor, em que muitas famílias pobres tiveram que mudar do muceque em que viviam há muito tempo para dar lugar a vivendas e prédios para famílias com mais posses. A expansão urbana era também muito evidente no Bairro Prenda, onde se construiram muitos prédios novos. Acima da Avenida dos Quarteis (Norton de Matos) até se construiu um bairro muito grande e completamente novo de construções ilegais - o Bairro Salazar - que ia até ao Aeroporto. Assim notei que em poucos anos mudámos de uma situação em todos nos conhecíamos na Maianga para uma nova em que éramos todos desconhecidos.
 
Luanda, 1970s - Cruzamento das ruas Silva Porto e Sá da Bandeira, Bairro do Café

Foi na Maianga onde pela primeira vez constatei a existência de dois mundos que a antiga Avenida António Barroso (hoje Avenida Presidente Marien Ngouabi) dividia: o da cidade dos brancos (Maianga e Alvalade) e o dos muceques dos africanos de cor (Catambor e Prenda). O Sporting Clube da Maianga era o elemento aglutinador desses dois mundos em que o factor "raça" não tinha grande significado. 
 
Apesar da política oficial de convivência racial apregoada pelas autoridades portuguesas depois de 1961, ainda subsistia em Luanda evidência clara de segregação racial dos tempos de colónia mais antiga. Em geral, o "branco" vivia no centro da cidade de cimento, e o africano (preto e mulato) viviam nos muceques da periferia; o "branco" era o patrão e o africano (preto e mulato) o empregado; o  "branco" era o dono do negócio ou loja, e o preto (as quitandeiras) dominavam o comércio informal; o médico era branco e o enfermeiro era mestiço ou preto; a "branca" era a dona de casa, e a "preta" era a lavadeira; o "branco" era o oficial do exército e o polícia, e o africano era o soldado raso ou cipaio; o "branco" (não a maioria) andava de carro privado, ao passo que o africano (preto e mestiço) andava a pé ou de maximbombo (autocarro). Os filhos das famílias brancas "de bem" estudavam em colégios particulares e mesmo até na metrópole (Portugal), ao passo que todos os outros (brancos remediados (a grande maioria), pretos e mestiços) estudavam nas escolas e liceus públicos do estado. Em termos de cobertura de serviços municipais, a cidade "branca" (do asfalto) tinha água canalizada, esgotos, ruas asfaltadas, transportes públicos, electricidade, iluminação pública, e protecção de polícia e bombeiros, ao passo que o muceque não recebia quuaisquer desses serviços.
 
Contudo, como resultado das transformações sociais e políticas trazidas pela guerra de 1961 a 1975, já nos primeiros anos da década de 1970, a grande maioria dos funcionários públicos já eram africanos mestiços e pretos, se bem que a inequidade económica continuasse de forma ainda muito flagrante.

Todos nós temos coisas de que nos arrependemos de ter feito nos nossos anos de juventude. Para mim, uma delas foi ter participado durante vários anos no carnaval de fuba da Maianga. Este consistia em atirar fuba (farinha branca de mandioca ou milho) aos muitos inocentes transeuntes que passavam a pé na Avenida António Barroso. A maior parte das vítimas eram pessoas de côr que iam ou vinham do trabalho, bem vestidas, sendo a última coisa que toleravam eram ser banhados de fuba seca, e de um momento para o outros ficarem completamente brancas. A maioria das vítimas reagia (com direito) e muitas vezes o carnaval acabava à pancada, até a polícia vir e parar com o desacato.
 
Da mesma forma, também temos actos bons de amigos que ficam connosco para o resto das nossas vidas. Comigo, sinto que tenho de contar que uma vez numa das matinées de domingo à tarde no Sporting Clube da Maianga houve um concurso de puxar a corda entre dois grupos no palco em frente a uma plateia repleta espectadores, em que após cada puxada, cada grupo perdia um membro até chegarem ao fim com um membro só cada para cada grupo na competição. Foi o caso entre eu e o Júlio, que era muito mais forte que eu, e que ele voluntariamente me deixou ganhar, mesmo a custo de não receber o melhor prémio. Este acto de amizade ficou na minha memória para sempre, e ajudou-me a ser um pouco menos interesseiro em situações em que eu via que eram de maior valor para outros. O Júlio era um de quatro irmãos (Zé, Russo, Júlio, e Gualter) e uma irmã oriundos de Portugal que viviam na rua João Seco logo a seguir à casa do Artur Herman Araújo e irmã Mizé Araújo (que veio a casar com o Carlos Abreu, jogador de hóquei). Infelizmente, ainda em Angola, soube da morte do Júlio num acidente numa viatura militar próximo da cidade de Silva Porto (hoje Kuito), mas ele e o acto que practicou ficaram para sempre na minha memória.
 

Estátua de Diogo Cão, primeiro português a chegar à foz do Rio Zaire em 1483, atrás o Palácio de Vidro, onde se encontravam muitas repartições públicas do governo provincial

Eu era relativamente conhecido e popular no Liceu Paulo Dias de Novais, onde grangeei muitas amizades. Entre os bons amigos que lá tive estava o Fernando Farinha, que era um ano mais velho do que eu, mas andava no mesmo ano que eu. O Farinha, como nós o chamávamos, tinha sido vítima de paralisia infantil quando ainda muito jovem pelo que tinha andar com a ajuda de dois aparelhos de prótese e muletas muito pesados e incómodos (um para cada perna). Contudo, ele estava sempre pronto para alinhar nas brincadeiras, mesmo que tal lhe custasse dor física. Ele morava logo ao princípio da rampa da Fortaleza, depois da ponte sobre a Rua Francisco Soveral, e nós fomos amigos chegados por todo o tempo no Liceu Paulo Dias de Novais e mais tarde no 6º e 7º anos no Liceu Salvador Correia. Talvez porque associasse a sua penosa cruz com a do meu irmão Rui, eu nunca esqueci o Farinha estes anos todos, e gostaria muito de ainda o poder encontrar e estar com ele uns momentos para recordar bons tempos nos velhos Paulo Dias e Salvador Correia. O Farinha tinha uma cadeira de rodas que ele usava raramente, já que a grande maioria dos edifícios e lugares em Luanda desse tempo não eram construídos para permitir o accesso e uso por pessoas com deficiência física acentuada.

Durante o período que vivemos no Bairro da Maianga, o nosso médico de família era o Dr. Mercês de Melo, que dava consultas no Centro Médico da Cruz Vermelha Portuguesa, situado perto do do Cinema Restauração, onde o custo das consultas médicas era mais baixo (quase de graça). O Dr. Mercês de Melo era um médico muito conhecido e respeitado em Luanda, ele era natural de Goa (ex-Índia Portuguesa) e tinha frequentado a famosa Escola Médica de Goa, era muito boa pessoa e tinha duas filhas muito bonitas e simpáticas (Tété e a Guida) que andaram no Liceu Slavador Correia.


Mural de azulejo, Liceu Salvador Correia, Luanda, mostrando as principais viagens dos Descobrimentos Portugueses através do mundo

No cinema do Sporting Clube da Maianga vi um filme que me ficou na memória para o resto da minha vida. O filme foi “O Livro de San Michele” que foi uma adaptação ao cinema feita em 1963 do livro com o mesmo título muito popular de Axel Munthe publicado em 1929, quando já tinha 71 anos de idade. É interessante referir que "O Livro de San Michele" foi o primeiro livro da popular e monumental Colecção Dois Mundos da Edição Livros do Brasil.

Mais tarde, como não podia deixar de ser, li o livro, que me encantou ainda mais. O livro é uma autobiografia muito pessoal e íntima em que factos vividos de uma vida simples e relativamente pacata se misturam com sonhos e receios, situações hilariantes, e com filosofia de vida, mas que são todos descritos com grande simplicidade, franqueza, e humanidade infinita. Do filme, lembro-me em particular da beleza da ilha de Capri, da vila San Michele, e da cena muito vívida da epidemia de cólera que grassou a cidade de Nápoles em 1884, na qual Axel Munthe tomou parte como médico ainda jovem.

Axel Munthe foi um médico sueco que exerceu medicina em Paris e em Roma na ultima década do século XIX e nas duas primeiras décadas do século XX, que assistiu doentes de todas as condições sociais Na sua primeira visita à Ilha de Capri, ao largo da costa de Itália, quando tinha apenas dezassete anos e ainda estudante de medicina, Axel Munthe apaixonou-se de imediato com a beleza da ilha de Capri, a vila de Anacapri, e a vida pacata mas interessante que se vivia na ilha. Em especial, ele apaixonou-se pelas as ruínas de uma capela muito antiga já em avançado estado de decomposição, mas mostrando ainda as maravilhosas linhas arquitectónicas de épocas há muito vividas. A capela tinha em tempos idos sido dedicada ao arcanjo São Miguel (San Michele), que por sua vez tinha sido construída sobre as ruínas da vila do Imperador Tibério no tempo do império romano. De imediato ele abraçou o sonho de comprar a capela em ruínas, restaurá-la para que pudesse viver lá, e por fim lá residir para o resto da sua vida (mais cinquenta e seis anos).


Em breve ele completou os seus estudos em medicina e abriu um consultório em Paris e mais tarde outro em Roma. Como médico de renome em Paris e em Roma, e em especial, como médico particular da Raínha da Suécia, em pouco tempo ele ganhou o suficiente para comprar a propriedade ao Maestro Vincenzo, que morava na vizinhança.

Como disse acima, o livro é uma autobiografia de Axel Munthe, mas é também muito mais do que isso. É uma alegoria à vida, a valores humanos, e ao sentido profundo de humanidade. Lembro-me do afecto que Axel Munthe tinha por animais, em especial pelo seu cão Jack e a sua burra Violetta. Para mim, o Livro de San Michele, ensinou-me a importância que o sonho tem na nossa vida, e quanto importantes são os valores humanos que nos guiam por esta viagem terrena, e como tal, ajudou-me muito como timoneiro nas escolhas que tive que fazer ao longo da vida.

 
A Macuta - a primeira moeda cunhada em Portugal para uso em Angola em 1762
 
Em 1965 ou 66 foi descoberto no local da construção de um prédio novo perto do largo onde se situava o Clube Atlético de Luanda (onde havia uma estátua de Luis Lopes de Sequeira), uma quantidade muito grande de macutas (moedas antigas), das quais consegui arranjar uma lata de flocos de aveia Quaker Oats cheia das ditas moedas, comprando algumas e outras trocando cromos e outros valores. Eu lembr-me que o achado destas moedas antigas (do séc. XVIII) era um importante achado arqueológico, que me levou a compreender melhor quanto importante era a arqueologia como ciência auxiliar da história. Da mesma forma, esta insólita colecção de moedas antigas fez-me também pensar na história económica de Angola, que então completamente desconhecia. Infelizmente, nas coisas que deixei em Luanda estava a dita lata de flocos de aveia cheia de macutas...
 

O paraíso que era a Ilha do Mussulo nos Anos Sessenta

Em 1966 ou 67, eu e um grupo de amigos da Maianga (o Edgar Neves, o Vítor Freitas, o Mário Jorge, o Júlio, e o Bernardino) decidimos ir acampar por uma semana para a Ilha do Mussulo. Fomos de autocarro até à Barra da Corimba onde era o cais do "Ka-Posoka" e do "Kitoko" que  nos levou até à paradisíaca Ilha do Mussulo. Uma vez na Ilha, procurámos o melhor lugar onde assentar as tendas de campanha, onde ficámos por uma semana. Lembro-me que a base principal de alimentação nessa semana foram caranguejos cozidos numa panela grande de água quente só com sal, que colhíamos durante o dia. Explorámos apé a Ilha do Mussulo toda, e eu consegui o donativo de muita fruta (bananas e mangas) da missão católica que havia na Ilha da Cazanga (também conhecida como Ilha dos Padres) em troca de explicações de história e geografia que dei aos aos alunos da missão. 


A nossa viagem à Ilha do Mussulo, em 1967

No Sporting Clube da Maianga, uma verdadeira escola para todos nós, comecei por jogar basquetebol (juvenis) por dois anos sob a orientação do famoso Ùnico (Francisco André) e mais tarde do Nanico  mas que por não ser alto e ter pouca (quase nenhuma...) habilidade para tal, mudei para hoquei em patins em júniores, em que a habilidade não era melhor. Como atletas do Clube, podíamos ir ao cinema sem pagar, o que resultou em ter ido ao cinema pelo menos duas ou três vezes por semana durante cinco ou seis anos, e o que me ajudou imenso a melhor perceber o mundo à minha volta. O bar do clube abria todos os dias, e à tarde e à noite (nos dias em que não tínhamos treino) nós íamos para lá jogar às damas, xadrez, e aos dados. Eu era um bom jogador de damas, mas nada que se chegasse à sapiência do Mestre Sr. Martins (que trabalhava no  Tribunal da Relação de Luanda) com as suas jogadas "piro-magneto-trápicas". Eu jogava xadrez mais ou menos bem, e competia muito com parceiros mais velhos do que eu. Lembro ainda aqui que os filmes do Cantinflas era sempre muito populares. O Sporting Clube da Maianga tinha equipas que competiam nos campeonatos e torneios distritais masculinos em futebol, basquetebol, e hóquei em patins, em três níveis - juvenis (14 a 16 anos), juniores (16 a 18 anos), e séniores (mais de 18 anos). O Sporting Clube da Maianga tinha também equipas feminina em basquetebol (juvenis e juniores).
 
 
A equipa de séniores do Sporting Clube da Maianga - alto -Fernando Costa Pereira, Silvestre, Joaquim, Carlos Abreu, frente - Russo, Artur Araújo, e Víctor Azevedo

As equipas de hóquei em patins do Sporting Clube da Maianga, tanto em séniores como em juniores, eram muito boas, levando sempre aos jogos um grande número de maianguistas. As equipas de futebol e de basquetebol não eram tão famosas. Para o transporte de atletas para treinos e jogos, o clube tinha uma carrinha fechada (van) de marca Commer com capacidade de transportar doze pessoas, das cores do clube (branco e encarnado). Lembro-me bem dos motoristas, o Sr. Guerra (pai da Fernanda Guerra), e o Sr. Araújo (muito castiço, e natural de Murça, Trás-os-Montes, Portugal.

Foi ainda nas matinées dançantes de domingo à tarde no Sporting da Maianga que a minha paixão pela Odete Lopes Silva me deu a coragem para lhe pedir namoro. A Odete era muito bonita e reservada. Ela era um ano mais nova que eu e jogava basquetebol no clube. Confesso aqui que não posso esquecer nunca os nossos passeios de namoro com a Odete acima e abaixo da Avenida António Barroso (com a Lurdes, a maior parte das vezes!) e o seu vestido azul com bolas brancas e lapelas brancas que lhe ficava tão bem. O seu pai era o Senhor Orlando Lopes da Silva que era vice-presidente (muito activo) da direcção do Sporting Clube da Maianga. A sua irmã Lurdes e a sua mãe (de que já não me lembro do nome) eram também muito simpáticas. O Sr. Orlando tinha um carro Austin A40 preto, modelo de 1950, que ele próprio tinha restaurado. A família Lopes da Silva vivia primeiro na Avenida António Barroso, mais ou menos em frente aos armazéns Martins & Almeida (Martal), mas mudaram-se mais tarde para o Bairro Popular. 
 
Falando da equipa feminina de basquetebol do Maianga, ainda me lembro de algumas atletas: a Odete, a Fernanda Caetano, a Nini, a Fernanda Guerra, a minha irmã Dilar, a Isabel Morna, a Mizé Araújo, a irmã do Genaro Pugliese, a irmã dos irmãos Mendes, a nossa vizinha Isabel, a Ana Maria Costa, a Carmo (irmã da NIni), e as irmãs Fançony.
 
Já que mencionei os Armazéns Martal, lembro-me que uma das famílias (Martins, ou Almeida, já não posso precisar,) ganhou a dez mil contos na lotaria da Santa Casa da Misericórdia, com o que construiram um prédio de apartamentos novo de dez andares na primeira rotunda da Avenida António Barroso, na esquina da rua José Oliveira Barbosa, e rua do Dr. José Maria Antunes.
 
 
15. O Gosto Pela Leitura e por Aprender
 
Eu li nessa altura um livro sobre a famosa viagem de exploração e pesquisa científica de Charles Darwin à volta do mundo entre 1831 e 1836 no navio H.M.S. Beagle, sob o comando do Capitão Robert Fitzroy. Foi nessa viagem que Darwin colectou a evidência necessária que deu corpo à sua teoria de evolução natural tão bem explicada no seu livro "A Origem das Espécies" publicado anos mais tarde em 1859. Para além da maravilhoasa descrição da região da Patagónia, da costa oeste da América do Sul (Brasil, Argentina, Chile, Perú e Equador), e das Ilhas Galápagos, este livro abriu-me a mente à teoria da evolução natural, que estava em contraste frontal com as explicações sem fundamento científico contidas na Bíblia propagadas pela Igreja. Aprendi assim com a viagem de Darwin a discernir a diferença entre ciência (método científico) e fé (religião). Lembro-me ainda dos estudos que Darwin fez nas Ilhas de Cabo Verde quando lá parou na sua viagem de ida.


Charles Darwin no Rio de Janeiro, 1832

Já que mencionei algo sobre ciência, Luanda tinha uma "pérola científica": o Observatório Espacial da Mulemba, situado na estrada do Cacuaco, com telescópios e equipamento capaz de monitorizar as naves espaciais americanas e soviéticas que nessa altura tentavam chegar à Lua, aos planetas vizinhos, e ao espaço sideral. O Observatório da Mulemba foi fruto do trabalho de uma pessoa extraordinária; o Sr. Carlos Bettencourt Faria, um autodidata astrónomo amador que com muito trabalho, inteligência e empenho construiu um observatório espacial em Luanda reconhecido mundialmente. Eu visitei o Observatório da Mulemba três vezes e lembro-me que fiquei muito admirado com o que vi e lá aprendi. Infelizmente, o Sr. Bettencourt Faria foi barbaramente assassinado em Julho de 1976, vítima do fervor  anti-ocidental que reinou no MPLA no periodo imediatamente após a independência. Luanda tinha outro observatório, o observatório oficial do governo - o Observatório João Capelo - operado pelos Serviços Metereológicos de Angola, que se situava no Beco do Balão, perto do consulado Britânico, abaixo do Palácio do Governador, junto à antiga Rua Diogo Cão.


 
O meu encanto por África cresceu com a leitura ainda cedo da biografia de Albert Schweitzer e a sua obra no hospital de Lambarené, no Gabão, e de dois livros muito interessantes de Fernando Laidley "Roteiro Africano" e "Missão em África" que relataram a primeira viagem de automóvel à volta do continente africano num Volkswagen "Carochinha", e dois anos mais tarde a única viagem de automóvel ligando as províncias portuguesas no continente africano (Guiné, Angola, e Moçambique) num carro de marca Ford Taunus, de fabrico alemão. 


Desenterrar o VW no deserto do Kalahari
Uma gravura da viagem de Fernando Laidley à volta de África
no seu livro "Roteiro Africano", 1958

Através dessas obras aprendi que a África era na verdade um continente muito grande e muito diverso com regiões e povos muito diferentes. Por outro lado, o meu interesse pela História de Angola começou com a leitura dos muitos livros de Elaine Sanceau sobre a expansão portuguesa no mundo, dos quais se destacavam, "O Infante Dom Henrique", "Os Descobrimentos Portugueses", "Os Portugueses no Brasil", "Capitães do Brasil",  "Afonso de Albuquerque", "Dom João Castro", e "Os Portuguese na Etiópia", e do livro Gastão Sousa Dias "E Julgareis qual Será o Mais Excelente..." que tínhamos em casa. 
 
A grande difusora do conhecimento sobre os Descobrimentos Portugueses Elaine Sanceau (1896-1978)
 
Eu gostava muito de ler a narrativa simples mas épica de Elaine Sanceau, pelo que aos poucos, e à medida que as poupanças me permitiam, comprei todos os livros da séria completa (a minha primeira colecção completa!) publicada pela Livraria Civilização, dessa grande mestra em história da expansão portuguesa no mundo que foi Elaine Sanceau. Foi ela quem abriu para mim as portas da expansão portuguesa no mundo e do contacto entre europeus e povos nativos através do mundo.
 
Gastão Sousa Dias (nome completo Gastão Adalberto Antunes de Sousa Dias, nascido na cidade de Chaves em Portugal, em 1887) foi um dos mais importantes historiadores sobre a história dos portugueses em Angola no século XX. Ele foi capitão do Exército Português e viveu em Sá da Bandeira (Lubango) durante muitos anos desde 1918 até à sua morte em 1955, onde foi professor de Português, História, Matemática, e Desenho, no Liceu Diogo Cão (segundo liceu em Angola). Ele nasceu e morreu precisamente nos mesmos anos em que o meu avô Júlio Pinto Correia nasceu e morreu. A sua obra extensa sobre história de Angola, ou melhor, sobre a história dos Portugueses em Angola, inclui muitos estudos importantes, como "Julgareis Qual Será o Mais Excelente...", "A Batalha de Ambuíla", "Os Portugueses em Angola", "Relações de Angola", "Pioneiros de Angola", "A Cidade de Sá da Bandeira", "Povoamento de Angola", "Os Auxiliares na Ocupação do Sul de Angola", e "O Destino da Grei".  Ele escreveu também ensaios biográficos muito bons sobre muitas personalidades importantes na história de Angola, como Silva Porto, Artur de Paiva, Manuel Cerveira Pereira, Dom António Barroso, Padre Charles  Duparquet, Padre Ernesto Lecomte, Monsenhor Keiling, e José de Anchieta.
 
 
O historiador Gastão Sousa Dias (1887-1955)

Foi nessa ltura também que li a biografia de Fernão de Magalhães, o famoso navegador português primeiro a dar a volta ao mundo, escrita por Stefan Zweig a partir dos diários de António Pigafetta. O feito de Fernão de Magalhães é de facto um dos maiores feitos (senão o maior) de exploração da história da humanidade. Contra tudo e contra todos, Fernão de Magalhães continuou fiel ao que  pensava e acreditava. Embora uma personalidade um tanto reservada, ele foi um líder extraordinário que grangeou o respeito e a admiração de todos, e é hoje o português mais reconhecido no mundo (talvez com a excepção de CR7 Ronaldo...) .
 

A incrível viagem de circum-navegação de Fernão de Magalhães (1519-21)

Após ler a história da sua vida e a descrição da sua incrível viagem de circum-navegação, Fernão de Magalhães ficou a ser uma das personagens históricas que mais admirei na vida; de facto, ele passou a ser o meu herói para o resto da minha vida, e de ter orgulho em ser português. Deste livro recordo em especial o parágrafo da oração fúnebre de Pigafetta após a morte de Fernão de Magalhães na Ilha de Mactan, nas Ilhas Filipinas, em que retrata o amor, a admiração, e o respeito que toda a tripulação tinha por ele. 
 
O escritor Stefan Zweig (1881-1942)

Stefan Zweig foi um escritor austríaco de origem judaica que escreveu muitos livros de grande popularidade nos anos Trinta, Quarenta e Cinquenta do século passado, dos quais acabei por ler toda a sua obra, e que destaco as biografias de Maria Antonieta, Raínha Maria da Escócia, e Américo Vespúcio, e a sua obra magistral "O Mundo de Ontem". Infelizmente, descoroçoado com a expansão do nazismo no munddo, ele e sua esposa fugiram da Áustria e Alemanha e refugiaram-se na Inglaterra, mudando mais tarde para o Brasil, onde, desiludidos com o mundo, acabaram por se suicidar ambos na cidade de Petropólis, no estado do Rio de Janeiro, em 1942.


Morte de Fernão de Magalhães, na Ilha de Mactan, Filipinas, 1521

Já mais perto da minha vivência quotidiana em Luanda, li o livro "Luanda, Ilha Crioula" de Mário António (Mário António Fernandes de Oliveira), meu conterrâneo de Maquela do Zombo, que foi uma figura erudita na década de Sessenta em Angola, que me ajudou a compreender melhor o mosaico cultural diverso que era Luanda desse tempo, e me revelou a "ilha" crioula que Luanda era no contacto e cruzamento de culturas. Talvez encorajado pela leitura desta importante obra de Mário António, li quase toda a obra do grande sociólogo Óscar Ribas, com ênfase em Missosso (três volumes), Izomba, Uanga, Sunguilando, e Quilanduquilo, que hoje guardo como grande tesouro. Através da pena de Óscar Ribas eu aprendi quanto rica era a cultura tradicional luandense.


O grande sociólogo de Luanda colonial Óscar Ribas (1909-2004)

Foi através dos escritos de Mário António sobre o fenómeno social da cultura crioula luandense que eu acordei à evidência de que foi a exploração marítima dos Portugueses que levou ao contacto entre muitos povos espalhados pelo mundo. Mário António Fernandes de Oliveira, meu conterrâneo de Maquela do Zombo, foi um investigador muito importante de história de Angola. Além do seu livro mais original "Luanda Ilha Crioula", ele coordenou a publicação da série monumental "Angolana - Documentação Sobre Angola" em três volume, publicados pelo Instituto de Investigação Científica de Angola (IICA) e o Centro de Estudos Históricos Ultramarinos (CEHU) que revelou ao público muitos documentos históricos entre os anos de 1783 e 1887.
 
 
Mário António Fernandes de Oliveira (1934-1989) Ensaista, poeta, historiador, e sociólogo
 
Cabe-me referir aqui que em 1969 o Tó Soto Maior deu-me um livro precioso sobre a História de Amgola - Nótulas Históricas, da autoria de Alberto de Lemos, e edição do CITA, que por várias razões acho importante. Foi o primeiro livro que li sobre História de Angola que foi escrito por um angolano (designado como angolense nesse tempo), se bem que ainda sob o tema da história dos portugueses em Angola, mas que descrevia de uma maneira muito clara e cativante o que era a vida quotidiana das famílias mais destacadas de Luanda nas últimas décadas do Séc. XIX e primeiras do Séc. XX. Ele foi o fundador dos Serviços de Estatística de Angola, e chefiou os trabalhos do primeiro Censo Populacional de 1940. Alberto Jorge Júdice Ferreira de Lemos, de nome completo, contribuiu com muitos artigos sobre história de Angola para a imprensa luandense do seu tempo (o jornal A Província de Angola), e escreveu também alguns contos sobre Loanda Antiga, dos quais destaco "Marinela, a Mulher da Moda" que foi uma descrição da derrocada da famosa família Lencastre de Luanda antiga. Os textos de Alberto de Lemos são claros na sua angolanidade genuína (e até de desdém sobre os novos colonos portugueses), especialmente se tivermos em conta que foram escritos como grito de resistência no auge da opressão do novo regime colonial e já policial do Estado Novo.
 

O historiador angolense Alberto Ferreira de Lemos (1893-1977)
 
Voltando ao fenómeno colonial, é certo que este contacto levou à exploração económica desenfreada desses povos nativos pelas nações europeias (imperialismo), o que invariavelmente levou a conflitos graves entre esses povos e a hegemonia europeia/ocidental (guerras coloniais e mundiais), que ainda hoje se travam no mundo. É a esta espiral histórica do colonialismo (exploração marítima - contacto - exploração económica - conflito) que eu chamo de furacão colonial. Comecei assim a compreender que o sistema colonial é na sua essência baseado no roubo da terra, das riquezas naturais, e do trabalho indígena, na opressão - o colonizado não é cidadão (é força de trabalho) -  e na violência (ocupação militar e castigos duros para faltas leves).

Mais perto do caso pessoal da nossa família, lembro-me que vi e re-vi o filme "E Tudo o Vento Levou" - uma história pungente de romance escrito por Margaret Mitchell e passado na Guerra Civil Americana (entre 1865 e 1871), no fim do regime de escravatura nos Estados Confederados do Sul, que a minha Mãe se referia com frequência. A estória é sobre a derrocada do sistema de escravatura de plantação (a Fazenda Tara na Geórgia) nos Estados do Sul) e as transformações radicais que trouxe as quem as viveu, não muito diferente da queda do sistema colonial em Angola. 
 
 
O pôr-do-sol (fim) da fazenda de plantação Tara no filme "E Tudo o Vento Levou"
 
Este filme  impressionou-me sobremaneira, não só pela mestria dos actores (Vivian Leigh como Scarlett O'Hara, Clark Gable como Rett Butler, Leslie Howard como Ashley Wilkes, e Olivia De Havilland como Melanie Hamilton), e Hattie McDaniel (como a criada escrava Mammy, desempenho pelo qual ela ganhou o óscar para melhor actora em papel de suporte, e a primeira actora afro-americana a ganhar um óscar) e qualidade da cinematografia (uma obra magistral do realizador David Selznick).
 
Na verdade, "E Tudo o Vento Levou" ajudou-me a compreender melhor a razão porquê e aceitar o facto de que a nossa família não havia de voltar jamais à Damba e à nossa Roça Novo Fratel, lugares que tanto amava. A Roça Novo Fratel tinha sido estabelecida pelo meu Avô em 1935 e situava-se nas fraldas da Serra do Cusso, a sudeste da Serra da Canda, já entre o Quibocolo uma pequena povoação perto de Maquela do Zombo, minha terra natal, e São Salvador (hoje Mbanza Kongo), no coração do Antigo Reino do Congo. 
 
Poster do filme "O Doutor Jivago"

 Mais tarde, quando já andava na Universidade de Luanda, eu vi o filme "Doutor Jivago" estreado em 1965, e baseado no livro do grande escritor russo Boris Pasternak publicado em 1957, laureado com o prémio Nobel da literatura, que simplesmente adorei. A estória de "O Doutor Jivago" é baseada no romance entre Dr. Yuri Zhivago (interpretado por Omar Sharif) e a enfermeira Lara Antipova (interpretada por Julie Christie) no seu refúgio na vila mítica de Yuriatin, perto dos Montes Urais, na Rússia, durante os tempos imediatamente após da Revolução de Outubro de 1917, e como as elites russas reagiram à revolução bolchevique. Neste filme, as interpretações de Geraldine Chaplin (como Tonya Gromiko), Rod Steiger (como Viktor Komarovsky), Alec Guiness (como General Yevgraf Zhivago), e Tom Courtenay (como Pasha Antipov / Strelnikov) foram também extraordinárias.
 
Estes dois filmes (E Tudo o Vento Levou e Doutor Zhivago) mostram de uma forma magistral o mesmo momento histórico em dois lugares e tempos diferentes (a derrota dos estados do Sul dos Estados Unidos da América, e o caír da aristocracia russa (que viria a ser derrubada pela Revolução Bolchevique de Outubro de 1917), e que para o  nosso caso seria a queda do regime colonial em Angola. Mal sabia eu, que pouco tempo mais tarde, eu haveria de estar numa situação semelhante, de ver o mundo a caír à minha volta, e de ter que considerar deixar Angola, e viver o resto da minha vida numa pequena cidade como Yuriatin, escondida nas frígidas Montanhas Rochosas do Oeste Canadiano.
 
 
 Poster do filme "Revolta na Bounty"
 
Lembro aqui que adorei ver o filme "Revolta na Bounty", uma estória maravilhosa baseado em factos reais passada nas paradisácas Ilhas do Pacífico (Tahiti) no Séc. XVIII, em que os marinheiros da corveta HMS Bounty comandados pelo tenente Fletcher Christian (Marlon Brando), encantados com a beleza das ilhas e das mulheres do Tahiti, se revoltam contra os excessos do capitão do navio William Blight (Trevor Howard), e decidem ficar com as suas novas esposas, em vez de voltar ao mundo europeu de então. Se o filme "A Revolta na Bounty" foi a minha introdução ao sonho das Ilhas dos Mares do Sul (Sul do Pacífico), o filme musical "South Pacific"foi o que me conquistou para sempre.
 
 
"South Pacific" - a subtil história de amor entre Nellie e Emile

Desde então sonhei sempre em visitar (e mesmo viver) nas paradisíacas ilhas dos Mares do Sul. O filme é baseado no romance do escritor James Michener "Estórias do Sul do Pacífico" publicado em 1946, passado durante a Segunda Guerra Mundial, em que o romance entre a enfermeira americana Nellie (Mitzi Gaynor) e as crianças que ela tomava conta e o piloto francês Emile (Rossano Brazzi) era o tema principal, coadjuvado por um arranjo excepcional de canções e arranjos musicais de Richard Rogers e Oscar Hammerstein, adaptados para peça de teatro. De todos os filmes musicais que vi, "South Pacific" foi aquele que mais gostei, e que ainda hoje, mais de cinquenta anos passados, me deixa a sonhar outra vez. Embora com um pouco de tristeza, eu nunca tive a oportunidade de visitar as verdadeiras Ilhas dos Mares do Sul, excepto as Ilhas do Hawaii, que visitámos quatro vezes, que são uma versão comercializada para turistmo de massas que nos faz lembrar ainda que longinquamente o sonho das Ilhas dos Mares do Sul.
 

Poster do filme "Hawaii"

Ainda sob o tema das Ilhas dos Mares do Sul (sul do Pacífico) e escritos de James Michener, eu gostei muito de ver nessa altura o filme "Hawaii", que é uma obra épica de James Michener sobre a colisão de culturas (Havaiana e cristã) na evangelização do povo Havaiano no princípio do século XIX, em que os missionários cristãos em vez de trazerem Deus e a Bíblia às Ilhas Hawaii, trouxeram apenas doença, destruição, e o acabar de do seu mundo. O filme oferecia muitas cenas maravilhosas que mostrava a cultura Havaiana antes do contacto com os europeus, especialmente música, dança, vestuário, padrões morais, religião, costumes e tradições, relações de parentesco, aristocracia, e organização política e social. O filme despertou em mim o interesse pela antropologia e pela dinâmica do contacto entre culturas muito diferentes. Eu tenho ainda que confesar aqui que eu gosto muito das Ilhas Hawaii e do seu povo, pois nós já lá fomos quatro vezes, e se eu tivesse mais posses era onde eu haveria de passar o pôr-do-sol da minha vida.


Claustros do Liceu Salvador Correia

Desde muito cedo os meus pais cultivaram em mim o interesse pela história e pelo negócio (eu era um bom jogador de Monopólio...), o que talvez subconscientemente me levou a seguir a Alínea "G" no Sexto e Sétimo anos (Ciências Económicas e Financeiras), quando mudei para o Liceu Salvador Correia. Os meus três anos no "Salvador Correia" (só fiz os exames de Matemática e Inglês um ano mais tarde) foram críticos para a minha formação como cidadão. Relembro ainda que era sagrada para mim a leitura da Revista Notícia (na calçada Gregório Ferreira)todas as semanas, em especial os escritos de João Charulla de Azevedo (cujo lema era "Projecto o melhor, espero o pior, e aceito de ânimo igual o que Deus quiser", palavras que me iriam guiar para o resto da minha vida), e a crónica semanal "A Chuva e o Bom Tempo" de João Fernandes. Da imprensa diária em Luanda lia com frequência os jornais matutinos "A Província de Angola" (de maior circulação em Angola, e que líamos diariamente), e "O Comércio" (ambos na rua Salvadorr Correia), e os jornais da tarde "Diário de Luanda"(sob directa influência do governo), na Avenida Lisboa, e o jornal "ABC"(que achava o mais independente), também na Rua Salvador Correia. Havia ainda o semanário "O Apostolado", publicado pela Igreja Católica, que era o órgão de imprensa religiosa de maior difusão em Angola.
 

Uma imagem antiga do Palácio de Ferro, na Rua Direita em Luanda

Cabe lembrar aqui que a imprensa em Angola desse tempo não era livre (longe disso!). Nós não vivíamos num sistema politicamente livre e democrático, mas sim num sistema autocrático colonial e em guerra. De facto, não só a imprensa, mas qualquer actividade de natureza cultural como a publicação de uma obra literária estava sujeita à censura prévia. Mais ainda, qualquer actividade política era cuidadosamente seguida pela PIDE (a polícia política - Polícia Internacional de Defesa do Estado). Dependendo da extensão do "desvio político", para alguns a falta acarretava a perda de liberdade de expressaõ, intimidação e opressão policial, e até perda de emprego. Estas formas de repressão fazia-os viver sempre num mundo de medo de quando a PIDE havia de os ir buscar a sua  casa para interrogatório, tortura, residência fixa longe de Angola, prisão, ou até morte. As prisões para presos políticos angolanos mais conhecidas era a prisão de São Nicolau, situado na foz do rio Bentiaba (uma região muito remota e de acesso muito difícil) no distrito de Moçâmedes, e o Campo do Tarrafal, em Cabo Verde. Em face dessas consequência , muitos angolanos preferiam "bazar" (fugir do país", e ir juntarem-sa aos movimentos de libertação que tinham as suas bases nos países vizinhos.  Mesmo assim, a qualidade de certos (poucos) meios de comunicação social era muito boa, pois as suas crónicas (como o João Fernandes na Revista Notícia, e Acácio Barradas no Jornal ABC) e reportagens e comentários (como Sebastião Coelho no programa noturno Café da Noite, na Emissora Católica de Angola) conseguiam passar sob o pente fino da Comissão de Censura e dizer ao público o que era preciso saber. Devo ainda dizer ao mesmo tempo que haviam muitos jornais e programas radiofónicos cuja qualidade era baixa e cuja função primordial era bajular o sistema colonial.


Capa da revista Notícia, Luanda, 30 de Janeiro de 1971


16. Liceu Nacional Salvador Correia
 
Findo o 5º Ano no Liceu Paulo Dias de Novais, eu entrei para o Liceu Salvador Correia em 1967. Entre os mundos das humanidades e das ciências no Liceu Nacional Salvador Correia, os alunos da Alínea "G" tinham certas disciplinas com os cursos de línguas (românicas e germânicas - Inglês), ciências histórico-filosóficas e direito (História), e outras com os alunos de ciências e arquitectura (Geografia e Matemática), sendo as disciplinas de Filosofia e OPAN (Organização Política e Administrativa da Nação) comuns a todas as alíneas do terceiro ciclo, o que me permitiu fazer muitas amizades de um universo mais alargado de colegas. Recordo aqui que havia uma certa concorrência entre os alunos de Direito e Economia, pois tínhamos três disciplinas comuns (História, Filosofia, e OPAN), mas como sempre, os alunos de economia eram melhores (não esqueço aqui o que o provébio "Presunção e água benta, cada qual toma a que quer...). Os melhores alunos da nossa turma de Ciências Económicas e Financeiras (Alínea G) eram a Margarida Chagas Lopes e o José Luís Seara de Morais.


Vista do Liceu Nacional Salvador Correia em ca. 1950, note-se atrás o Bairro do Café com muitos terrenos ainda vazios

Lembro aqui as professoras Dra. Teresa Velhino (de Inglês), a Dra. Piedade (de alcunha Periquita, de Filosofia), a Dra. Graça Prata (de História), e Dr. Catarino, o notável professor de filosofia e OPAN no 7º ano. Adorei todas as disciplinas (História, Geografia, OPAN, Matemática, Inglês, e Filosofia), em especial História, Geografia e OPAN (Organização Política e Administrativa da Nação) em que eu era um dos bons alunos na turma. 
 
A nossa professora de Geografia era a Dra. Ondina Amarelo Cruz, que penso que era natural de Cabo Verde (não estou completamente certo), que nos fez gostar ainda mais de cosmografia, e geografia física, económica, e humana. O tópico de cosmografia, que eu adorei, era um dos ramos dentro da astronomia, não era de fácil compreensão mas dava azo a uma ginástica mental muito mais ampla.
 
No Sexto Ano fui escolhido para fazer parte da turma experimental de Matemática Moderna no Liceu Salvador Correia - havia outra turma mista no Liceu D. Guiomar de Lencastre lecionado pela Dra. Maria Estefânia Marques - que muito me ajudou a aprender a trabalhar melhor com os meus neurónios. Lembro aqui com muita saudade a figura do Dr. José Cândido Vinhas Novais, que como professor da turma de Matemática Moderna despertou em nós o interesse pela matemática não convencional.
 
Foi um privilégio muito grande para mim ter sido escolhido para a turma especial de Matemática Moderna no 6º e 7º anos. Para além do currículo conventional de matemática para o 3º Ciclo, nós aprendemos um campo de matemática muito mais amplo, incluindo lógica matemática, teoria de conjuntos, teoria de grupos, aneis e isomorfismos, números complexos, álgebra de Boole, topologia, teoria dos números, análise combinatória, introdução à estatística e teoria das probabilidades, teoria dedutiva dos números naturais, cálculo vectorial, transformações e isometrias, matrizes, e álgebra linear, e cálculo infinitesimal (derivação, diferenciação, e equações diferenciais). O programa de matemática moderna ajudou-me muito mais tarde na Faculdade de Economia da Universidade de Luanda, pois além de poder manipular facilmente símbolos e números, com ele aprendi a compreender melhor a matemática como uma ciência e uma forma de linguagem, e a trabalhar melhor com conceitos muito mais complexos de modelos no tratamento matemático da economia.


A minha Certidão de Habilitações Literárias confirmando eu ter completado o 3ª Ciclo dos Liceus (7º Ano)

Escrevi nesse ano o meu primeiro artigo (uma resenha biográfica) sobre o Barão Pierre de Cubertin e os jogos olímpicos modernos que foi publicado no nosso saudoso jornal "O Estudante", orgão dos alunos do Liceu Nacional Salvador Correia, que despertou em mim o gosto (mais tarde paixão) por escrever.

Nesse ano ainda, comecei a ajudar em matérias administrativas no conselho técnico do Sporting Clube da Maianga, sob a direcção do meu grande amigo e mentor Sr. Carlos Morais, funcionário dos Caminhos de Ferro de Angola e membro da direcção do clube (Secretário). Tornei-me assim o dirigente desportivo mais jovem acreditado nas associações provinciais de futebol, basquetebol, e hóqei em patins. Eu devo muito ao Sr. Morais, pois foi ele quem me orientou e ajudou como fazer o meu trabalho. O Sr. Morais era casado com a Dona Dina e não tinham filhos. Ambos eram uma referência de participação social e um modelo para nós todos seguirmos. O Sr. Renato dos Santos, que era funcionário dos CTT (Correios, Telégrafos e Telefones) também me ajudou muito no desempenho desta responsibilidade. O Sr. Renato tinha perdido um braço num acidente ainda cedo na vida, mas mesmo assim e já não jovem, ele atravessava a Baía de Luanda a nado, só com um braço; a quem muito devo a ambos como aprendiz, o que me permitiu lidar com atletas de todas as categorias sociais, e de me aperceber de mais perto da diferença entre os dois mundos em que se dividia as sociedades luandense e angolana de então. 


Alunos na Biblioteca do Liceu Nacional Salvador Correia, 1969

Ainda no Sexto Ano do liceu estive em casa doente cerca de dois meses com febre tifóide o que me deu a oportunidade de ler muitos livros dos meus pais, dos quais destaco "As Vinhas da Ira" de John Steinbeck, uma obra de um realismo social intenso que me marcou sobremaneira, baseada na experiência da Grande Depressão Económica na América nos anos Trinta, em como uma família (a família Joad) de trabalhadores agrícolas (os Oakies), vítimas de uma exploração atroz nos campos de algodão do Olklahoma, tinha perdido todos os seus parcos haveres devido à crise económica de 1929-32 e exploração desenfreada dos donos da terra, banqueiros, e elites económicas, e decidira emigrar para a terra prometida das plantações de frutas no Vale de Salinas na Califórnia, mas que nessa jornada ia sendo destruída aos bocados, e com heróica dificuldade sobreviveu a pobreza e exploração implacável do estado, dos bancos e dos grandes proprietários da terra na Califórnia de então. O livro acaba com um quadro dramático de horror e ao mesmo tempo de esperança, quando a filha mais velha da família Joad, acaba de dar à luz um bebé morto, mas amamenta com o seu leite um homem que estava agonizando de fome.

Poster do filme "As Vinhas da Ira" baseado no livro de John Steinbeck

Li ainda todas as Selecções do Reader’s Digest desde que tinham começado a serem publicadas em língua portuguesa no Brasil (que os meus pais assinavam há alguns anos), li anos e anos de edições do Almanaque Bertrand que tínhamos em casa, e li e reli muitas vezes quase todos os artigos do volumoso e velho "Dicionário Universal Lello" que tínhamos herdado do nosso avô. 
 
Não esqueço ainda as muitas páginas de publicidade nas Selecções do Reader´'s Digest dedicadas ao esforço de desenvolvimento económico e social do Nordeste do Brasil entre 1962 e 1964, liderados pela SUDENE (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste, liderada pelo grande economista brasileiro Celso Furtado) que despertou em mim o interesse pela economia política, pela exploração colonial e enriquecimento da Europa e dos Estados Unidos, pelo subdesenvolvimento, e pelo estudo em como se superar o estado de pobreza de um país, pela intervenção estatal na economia, e pelo papel que o planeamento económico pode desenvolver em superar o subdesenvolvimento, o que me levou a escolher o estudo desses temas economia mais tarde na universidade e durante o resto da minha vida. Com Fernão de Magalhães e Charles Darwin, o grande economista brasileiro Celso Furtado passou a ser um das figuras que mais admirei na vida.
 
Dos artigos que li nas Selecções do Readers' Digest, não esqueço a biografia de Charles Proteus Steinmetz, um génio corcunda alemão, engenheiro electro-técnico de formação, que fez grandes descobertas e invenções no campo da electricidade (das quais a currente alternada) nos princípios so século XX, e que despertou em mim o interesse pela história e progresso da tecnologia. 
 
Com menor impacto na minha vida lia também muitos artigos que eram de facto livros condensados de obras importantes editadas na altura, como "Tora Tora" (a história do ataque japonês a Pearl Harbour, nas Ilhas Hawaii em 1941, a história da batalha de Midway, no Pacífico Norte em 1942, e até a obra de propaganda da ditadura militar brasileira "O País que se Libertou a Si Mesmo" que descreveu o golpe de estado militar brasileiro em 1964, que infelismente havia de durar até 1988.


Luanda, trecho da Avenida Marginal, 1965

Deste período de repouso "declarou-se oficialmente" o meu interesse por livros e pela leitura, embora já desde muito jovem gastasse em livros o pouco dinheiro que com dificuldade amealhava, e o meu fascínio pela história como registo da experiência de sociedades e mundos passados. Recordo aqui o papel crítico que o Tó Soto Maior desempenhou em aproximar-me ainda mais dos livros com a dávida de dezenas de livros do CITA (Centro de Informação e Turismo de Angola - onde ele trabalhava) e da Agência Geral do Ultramar sobre Angola e sobre a história de Portugal Ultramarino, etnografia e história de Angola, e incluindo a valiosa revista "O Turismo", que tenho a colecção quase completa. Cabe-me ainda mencionar aqui que frequentei poucas vezes a Biblioteca Municipal de Luanda, que estava instalada no edifício da Câmara Municipal de Luanda acima do largo da Mutamba e perto da Igreja do Carmo. A biblioteca municipal era um lugar muito formal, sem muita luz, "cheirava a erudito", e em que não se podia fazer barulho, mas que tinha uma quantidade impressionante de livros guardados em prateleiras de vidro que enchiam as paredes altas até quase ao teto.


Quem adivinha esta rua de Loanda Antiga?
Um dos edifícios (qual?), ainda que um pouco modificado, ainda existia em 1975.

No ano em que repeti o Sétimo ano só tinha duas disciplinas (Matemática e Inglês) eu trabalhei na Secretaria da Fazenda do 1º Bairro Fiscal de Luanda, na Mutamba, e eu e o Luís Delgado vivemos na casa da família Morais (Sr. Alfredo, Dona Lena, e Tommy Morais) que tinham ido passar licença graciosa a Portugal. Nota - A licença graciosa era um benefício de emprego pelo qual a maioria dos funcionários públicos em Angola tinham direito a ir passar seis meses de férias pagas com a família a Portugal de cinco a cinco anos. A casa da família Morais era um apartamento muito bom e amplo situado no primeiro andar de um prédio pequeno de três andares,  com vistas para a Baixa de Luanda, localizado na Rua Pedro Nunes, ao fundo da rampa do Liceu Salvador Correia, do lado esquerdo (para quem vai para baixo), à frente da Cooperativa dos Empregados das Companhias de Petróleo (Coopetrol). Durante esse período eu ia almoçar e jantar ao Restaurante Tonga, uma esplanada para comensais muito arborizada que se situava atrás da sede do Instituto do Trabalho e perto da sede do Sindicato dos Motoristas, junto à esquina das ruas Conselheiro Júlio de Vilhena e Engenheiro Artur Torres (entre a Avenida do Hospital e o Largo Serpa Pinto).
 
Em 1970  eu acabei o Sétimo Ano do liceu e fiz o exame de aptidão às universidades portuguesas em Portugal Continental, já que não havia ainda uma faculdade de Economia na Universidade de Luanda. O exame de aptidão foi só sobre Geografia, pois dispensei a Matemática. Eu lembro-me que estudei muito para este exame, e que acabei por dispensar à prova oral (só fiz a prova escrita), e que em mais de 150 examinandos, só três dispensámos à prova oral. Talvez ainda mais do que eu, o meu Pai ficou muito feliz com o feito e celebrou-o com muita alegria quando telefonei para Cabinda a dizer os resultados do exame.
 
A colónia de Férias da Ilha de Luanda, da Mocidade Portuguesa

Durante os meus três primeiros anos na Universidade de Luanda, fiz parte da equipa de remo da Mocidade Portuguesa, da qual era timoneiro, e que me deu a oportunidade de visitar o Lobito e Moçâmedes várias vezes nos campeonatos provinciais de remo, nos quais fomos campeões de Angola em alguns. Eu sempre gostei muito da praia e do mar, mas a prática de um desporto náutico nas tardes de fim-de-semana sob a calema (brisa) da Baía de Luanda, que eu haveria de conhecer tão bem, foi para mim uma das actividades das quais guardo as melhores recordações. 


Uma boa tarde de sábado no Pavilhão Náutico
da Mocidade Portuguesa na Ilha de Luanda
 
Como mencionei anteriormente, a nossa família era remediada, e qualquer ajuda para aliviar o orçamento familiar era bem vinda. Assim, desde cedo trabalhei nas férias grandes, o que não era normal nesse tempo. Trabalhei durante dois períodos de férias grandes na Proquímica (a maior firma importadora de produtos farmacêuticos em Angola), um ano na firma Rocha Monteiro Lda.   (importação e comercialização de equipamento para fotografia, relógios, e óptica), e no meu último ano do liceu na trabalhei na Secretaria de Fazenda do 1° Bairro Fiscal (no rés-do-chão do prédio dos Serviços de Fazenda e Contabilidade, na Mutamba, hoje Ministério das Finanças), nos últimos três anos da universidade fui passar as férias grandes (de Junho a Setembro) a Cabinda com os meus pais e irmãos. Cabe-me ainda dizer que muitos amigos da minha idade que viviam na Maianga deixaram de estudar para trabalhar e ajudar a família muito cedo na vida.

 
Largo da Mutamba, Luanda, 1962


17. Cursos de Vida Apostólica 
 
No ano em repeti o Sétimo Ano do liceu tive a sorte de ter sido escolhido a participar num retiro de cristandade para jovens (os Cursos de Vida Apostólica - CVA), onde de perto me apercebi do papel que a religião e a ideologia tinham na formação e controle das sociedades luandense e angolana de então. Aí fiz grandes amizades que se mantêm até hoje, e aí aprendi o dilema da Igreja Católica em Angola durante todo o período colonial em tentar reconciliar a exploração colonial com a vida digna dos povos nativos.

Selo com figura da Igreja de Jesus em Luanda

Cedo me entreguei a esse ideal nobre, pois, de facto, os CVA foi um bom movimento de juventude que fez uma obra notável em Luanda. Talvez pela minha dedicação ao ideal do humanismo cristão, dentro de pouco tempo fui escolhido para "responsável" (dirigente); dois anos mais tarde fui escolhido para substituir interinamente o meu bom amigo Luís Delgado, que por sua vez tinha sucedido ao carismático Toni Barbosa (falecido há anos no Brasil), no cargo de presidente do movimento. Como tal, tinha encontros frequentes com o corpo de dirigentes leigos e religiosos (Padre Francisco Janeiro e Capelão Padre Jorge), em especial com o (então) Bispo Auxiliar de Luanda D. Eduardo André Muaca, que me ajudou a "abrir mais os olhos" à situação de injustiça social que a população não-branca de Angola tinha que enfrentar no seu dia-a-dia. 

Dom Eduardo André Muaca, Arcebispo de Luanda (1924- 2002)

Natural da área Missão do Lucula, posto de Tando Zinze, em Cabinda e de raça negra, o Padre André Muaca, primeiro como professor de Religião e Moral no Liceu Paulo Dias de Novais, e mais tarde como bispo na Arquidiocese de Luanda, teve uma influência extraordinária na minha formação, e guardo dele as melhores memórias como amigo genuíno, e guardo em especial a memória da cerimónia inesquecível da sua consagração como bispo a 31 de Maio de 1970, na Igreja de São Paulo em Luanda, já que Dom Eduardo foi o segundo bispo de raça negra em Angola, desde os tempos do Antigo Reino do Congo. Nota - O primeiro bispo africano foi o príncipe Dom Henrique, príncipe do Congo, tinha sido ordenado Bispo de titular de Útica pelo Papa Leão X em 1521, sob recomendação do Rei Dom Manuel I de Portugal. Em reconhecimento por tão alta honra, o seu pai, o rei do Congo Dom Afonso I, atribuiu-lhe a donataria da província de Pango (Mpangu). 


Interior da Igreja do Carmo em Luanda

Os CVA ofereceram-me a oportunidade de conviver com um grupo muito mais amplo de amigos, oriundos de todos os quandrantes sociais de Luanda, e de pensar na melhor maneira de aplicar a minha energia em projectos concretos de relevância social; assim, envolvi-me em projectos de assistência ao Abrigo dos Pequeninos (em cooperação com a Associação das Vicentinas de Luanda (São Vicente de Paulo) na antiga Avenida Lisboa - Aeroporto, agora Avenida da Revolução de Outubro), e do Beiral dos Velhinhos (na Terra Nova), em que pude constatar ao vivo as necessidades reais dos desprotegidos pela sorte e esquecidos pela sociedade. A razão que me levou a trabalhar com crianças muito novas foi um evento muito trágico que ficou para sempre na minha memória, que tinha acontecido uns anos antes em Luanda, quando 37 crianças que viviam num lar para crianças orfãs no bairro da Terra Nova morreram por intoxicação alimentar, quando por engano foram servidas comida feita com farinha contaminada por insecticida.

Prédio do Abrigo dos Pequeninos de São Vicente de Paulo em Luanda

Ainda no domínio social, recordo o bom convívio que a reunião semanal (ultreias) às Quartas-Feiras, a missa semanal às Terças-Feiras (incialmente na Igreja do Carmo, e mais tarde na Igreja da Sagrada Família), e a missa no Domingo à noitinha na Igreja de Jesus, nos ofereciam. 


Igreja da Sagrada Família em Luanda

Talvez como mais-valia do trabalho social em que nos empenhámos, ainda nos CVA aprendi a diferença entre fé cristã e humanismo cristão de D. Helder da Câmara, Bispo do Recife, abraçando gradualmente o humanismo cristão já que à medida que mais aprendia e trabalhava no terreno, a minha fé em Deus (e talvez nos homens) se desvanecia gradualmente. Provavelmente influenciado pela realidade social angolana e pelo que lia e aprendia à minha volta, eu comecei a acreditar em que o que era ser bom era ser humano, e o mal provinha do que era ser perverso. Eu aprendi assim (também gradualmente) que ambos o paraíso e o inferno que a fé em Deus nos oferecia não era senão os tempos felizes e maus que a vida nos dava cá na Terra, e que tudo terminava quando morríamos, não tendo qualquer relevância o pós-vida, senão as obras e memórias boas e más que haveríamos de deixar.  


Igreja da Sé (Nossa Senhora dos Remédios), na Rua Salvador Correia em Luanda

Eu tenho muito boas memória de muitos amigos (irmãos) dos CVA, incluindo o Toni Barbosa (já falecido), Luis Delgado, Aníbal Russo, Tommy Morais (também já falecido), Victor MeloJoão Marinho (Zinho), Fernando Figueiredo, irmãos Rui e Chico Travassos, Abilio e Fati Nunes, Adriano Baptista, Manos Zé e Luisa Guilherme (também já falecidos), Fernanda Dias, Paula Serra Coelho (também já falecida), irmãs Lacerda (Teresa e Fernanda), Dita, Célia Brito (Lilla), Carlos e Mizé Abreu, Hilário Oliveira, Seara de Morais, Cecilia Alves (Cila), Carlos Godinho, Eva Bizarro (Mitinha), Manas Tita e Fernanda Ramos, José Ataíde, Padre Janeiro, Padre Jorge, e tantos outros.

Participantes no Sétimo CVA masculino, Luanda, 1969

Um dos amigos mais chegados que tive nos CVA foi o António (Tó) Guerra, que residiu antes de 1961 na vila do Quitexe (no Uíge) e que também foi vítima dos ataques da UPA. O Tó Guerra gostava muito de aviões  e de tudo quanto era voar. Ele tirou o brevet no Aero Clube de Luanda. Com ele tive a oportunidade de visitar Porto Amboím (antiga Benguela-a-Velha) e Novo Redondo (hoje Sumbe). Fomos noutra viagem até Cabinda com a intenção de comparmos aparelhagens de som (que eram duty-free em Cabinda) ao longo da costa norte de Angola, passando pela Barra do Dande, Caxito, Ambriz, Ambrizete (Nzeto), Santo António do Zaire (Soyo), Boma, e a baía de Cabinda. Lembro-me que na viagem de regresso carregámos peso demais na avioneta , o que nos fez a ter que deixar metade das coisas em Ambrizete e ter que voar lá no dia seguinte para trazer o resto. Ainda em Luanda, o Tó Guerra casou com a Fernanda, que também era membra dos CVA. Depois de deixarem Angola, eles viveram muitos anos em Coimbra. Fui também amigo chegado da Tita (Fátima Ramos), que era irmã da Fernanda. Lamentavelmente, o Tó Guerra veio a falecer precocemente em Coimbra há já uns anos.


Ermida da Nazaré em Luanda, aguarela de Zélia Reis Ferreira

Decidi então, com grande dificuldade, deixar os CVA e abraçar o novo mundo que então na universidade se abria para mim. Contudo, apesar deste afastamento gradual da fé cristã, guardo dos CVA e dos amigos que lá encontrei as melhores recordações. Depois de mais de cinquenta anos passados é particularmente confortante saber que o pessoal dos CVA continua ainda muito unido e tem um ou dois encontros anuais em Portugal, graças à iniciativa do nosso amigo Aníbal Russo e de outros que teimam em lembrar-mos que a verdadeira amizade existe muito para além do tempo e da crença.